Esporte sem barreiras

A bola rolava na rua, os meninos driblavam uns aos outros na tradicional pelada de futebol, mas o gol custava a sair. Lá, debaixo das traves, estava a goleira Kaká fazendo toda a diferença para o seu time. No passado, mais do que hoje, essa era uma cena que chamava a atenção: uma menina jogando futebol. Muitos teciam comentários desagradáveis, lembra a jogadora. Assim foi o início da carreira de Renata Maria, a Kaká, hoje com 36 anos, goleira profissional do Flamengo. Mas, para conquistar esse posto, ela enfrentou muitos desafios. Segundo a jogadora, o preconceito sempre existiu e, antigamente, com a falta de visibilidade, isso era mais grave. “Há 10 anos era difícil ter o feminino em vista como hoje. As pessoas tinham muito preconceito e não era um assunto tão falado como agora.” Independentemente das dificuldades que passou, desistir nunca foi uma opção para a atleta. “A Copa deu uma ótima repercussão e isso foi positivo para nós, está agregando muito e espero que esse movimento não pare”, finalizou ela.

Kaká durante jogo do Campeonato Brasileiro / Foto: Divulgação

Persistência, paixão, entrega e dedicação são algumas das características de todos os que vivem para o esporte. Altos e baixos, vitórias e derrotas e muito sacrifício fazem parte dessa grande trajetória que é ser atleta. Além de ultrapassar todos os limites exigidos para se chegar ao alto rendimento, para alguns, dentro de sua própria modalidade, existem barreiras a serem quebradas. A desmistificação de gênero no mundo desportivo ainda faz com que homens e mulheres lutem todos os dias para praticar modalidades ditas para o sexo oposto.

Atualmente existem duas em que apenas mulheres podem competir nas Olimpíadas: o nado sincronizado e a ginástica rítmica. Quatro apresentam disputas mistas: badminton, hipismo, tênis e vela. Duas modalidades são exclusivamente destinadas aos homens: a luta Greco-romana (mulheres participam apenas da luta livre) e a canoagem (elas competem somente nas disputas de caiaque).

Por mais que existam times femininos e masculinos de diversas modalidades, ainda assim, muitos atletas relatam a permanência do preconceito refletido na falta de valorização profissional, na divulgação das competições ou até mesmo na equivalência salarial.

A Confederação Sul- Americana de Futebol (Conmebol) passou a exigir que os clubes participantes de competições masculinas iniciem investimentos em torneios femininos, medida que passou a valer em 2019. Além de maior participação e incentivo à categorias de base, a diferença de salário é também uma pauta em questão. Segundo dados do UOL Esporte, no último ano, o Campeonato Brasileiro pagou R$ 120 mil às jogadoras, enquanto os homens receberam R$ 18 milhões.

Foto: Divulgação

Além dos esportes ditos “para homens”, há também a situação inversa. O nado sincronizado é uma escola historicamente voltada para mulheres, mas as duplas mistas são a grande esperança brasileira das Olimpíadas na modalidade. Giovana Stephan e Renan Alcântara são referências no assunto. Juntos desde 2015, têm alcançado grandes feitos para o Brasil como o Bicampeonato Sul Americano e o melhor resultado da história latina em mundiais, conquistando a sétima colocação em 2017 e 2019. Renan entrou no nado aos sete anos, mas não podia competir nem se apresentar por ser uma modalidade exclusiva para meninas. No final de 2014 foi aberto para a participação masculina e em 2015, a comissão técnica da Seleção Brasileira o chamou para fazer parte do time. “Temos o sonho olímpico de representar o país e estamos lutando  pela inclusão dos meninos”, afirmou ele.

A dupla Sul Americana Giovana Stephan e Renan Alcântara / Foto: Beth Biermann

A participação masculina vem crescendo cada vez mais. Antes, apenas Renan representava a bandeira e hoje, já são 20 homens em todo o Brasil no nado sincronizado. Giovana tem muito orgulho de estar nesse movimento e tem no seu parceiro de dupla muita confiança e admiração. “Ele é um exemplo para todos que nos assistem. As pessoas se sentem mais inspiradas a participar quando percebem que tem um cara tão bem colocado e talentoso nesse esporte”, assegura a nadadora. Participar de algo que era voltado para outro público sempre foi um grande desafio, mas para Renan hoje é motivação. “Me lembro de um caso em que na escola pediram para desenhar o que eu queria ser quando crescer. Me desenhei dançando na água e a professora chamou meus pais achando que era um absurdo pois esse esporte era de mulheres” e completou: “Eu sempre tive um pouco de receio, mas quando vi que tinham tantas pessoas do meu lado e acreditando no meu potencial, tudo o que não era positivo deixei de lado para ver o esporte quebrando qualquer tipo de tabu”, contou o campeão sul-americano com muita satisfação.

A esperança é que nos próximos Jogos Olímpicos o dueto misto já seja aceito e, assim, além de conquistar a vitória da inclusão, o Brasil possa ter grandes chances com a dupla promissora. “É muito lindo participar disso e sentir na pele como é ajudar outras pessoas a entrarem no esporte. Acho que é nossa grande missão incluir pessoas e ver que é um espaço para todos. Ser pioneiro nisso é minha maior gratificação”, finalizou Renan.

Tina Black totalmente focada durante sua preparação para competir / Foto: Beth Biermann

Outro universo que também caminha para a igualdade é o das artes marciais. Mulheres buscam cada vez mais o mesmo espaço, oportunidades e valorização. Com essa proposta o treinador João Rodrigo Gomes criou o time Mulheres Super Poderosas (MSP). A história do grupo exclusivo para mulheres começou com a necessidade de treinar grandes lutadoras da equipe Nova União, que participavam do UFC. Era necessário ter outras mulheres para os treinamentos já que grande parte da preparação era com os homens. O recrutamento foi a partir de amigos e meninas de outras academias, para, assim, montar o grupo. O time faz parte da academia Warriors and Headquarters e, lá, elas praticam  jiu jitsu, boxe, kickboxing, wrestling,  muay thai e luta livre, cada luta com um professor especializado.

De acordo com João, o preconceito é o rival. “Meu maior problema é esse. As pessoas subestimam as lutas femininas e acham que não vai ser tão atrativo quanto ver os homens lutarem. Mas elas se entregam muito mais e fazem bem feito. Elas, sim, são verdadeiras guerreiras”, afirma ele. Uma das atletas do MSP é  a Valesca, mais conhecida como Tina Black, de 23 anos. Natural de Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, começou a praticar aos 14 com o cunhado que era professor. Conheceu o grupo em uma das competições que participou e lá a chamaram para lutar. Desde então, cresce a cada dia a busca pelo sonho de se tornar uma atleta de alta performance.

“O preconceito sempre existiu, mas eu não ligo para o que as pessoas falam”, disse Tina e completou “Com preconceito ou não, minha meta é aumentar a frequência de lutas e vitórias para, assim, começar a ser bem vista nesse meio. Vou ganhar grandes competições aqui e depois estar em campeonatos internacionais, visando o UFC”.

Foto: Beth Biermann

A lutadora divide uma casa na comunidade com outras sete integrantes do MSP para o deslocamento não ser mais um empecilho nessa jornada. Todas vivem apenas para lutar, deixaram para trás qualquer outro trabalho que tinham antes. Por outro lado, a recompensa por todo esforço e empenho não vem de forma igualitária. “Os eventos não pagam passagem nem da atleta, nem de treinadores – tiramos tudo do bolso. Temos um custo de, em média, quase 6 mil reais para colocar cada  uma das nossas atletas apenas para lutar”, ressalta o treinador. Na maioria das vezes elas recebem exatamente o valor que gastaram para entrar na competição, ou seja, elas não ganham nada. “Há também por parte das competições a desvalorização das mulheres. Enquanto um homem ganha R$ 10 mil, uma mulher ganha R$ 2 ou R$ 3 mil e é a mesma luta. Assim não estão dão tanto valor ao que elas fazem, nem recompensando da forma como elas merecem”, alertou João.

Para chegar em casa, as meninas precisam subir exatos 420 degraus, mas, para elas, até isso é um aprendizado. “Elas me perguntavam o porquê de escolher essa casa tão no alto e eu disse que é para elas lembrarem de subir na vida todos os dias. Hoje, isso não passa de uma brincadeira nossa, mas  acredito  que um dia ainda vamos parar na beira da praia, em alguma cobertura ”, contou o criador do time e salientou : “Elas sabem que isso só depende delas todo santo dia. Ainda vamos rir disso! Elas vão ser vitoriosas por méritos próprios e se tornar uma grande referência para todos.”

 

 

One Reply to “Esporte sem barreiras”

  1. Poxa até que fims outras informações que estava
    encontrando não tinha nada a ver com o assunto.
    Infelizmente são poucos os sites no qual encontrei o que
    procurava e bem escrito a informação correta. Obrigado e
    compartilhado nas minhas redes sociais com alguns colegas.

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