Futebol Feminino – Fora da Copa, mas dentro dos corações brasileiros

Arte da capa por Rayssa Sanches

Por  Júlia Cruz

 

“Eu termino aqui, mas elas continuam…”. A maior artilheira em Copas do Mundo entre homens e mulheres se despede do mundial deixando sua mensagem e seu legado. Marta Vieira da Silva é considerada a maior jogadora de futebol de todos os tempos, ganhadora do prêmio de melhor do mundo seis vezes e peça fundamental na evolução do futebol feminino no Brasil. Na Copa do Mundo FIFA 2023, Marta teve sua última chance de conquistar a primeira estrela com a seleção. Mas, aos 37 anos e no seu sexto Mundial, a Rainha presenciou a saída precoce do Brasil na Copa.     

 

Marta em campo pela seleção no jogo Brasil x Panamá. Foto: Thais Magalhaes/AFP

 

A eliminação da seleção ainda na fase de grupos não era esperada. O fato gera um alerta sobre a urgência de investimento na modalidade. Este ano, a FIFA anunciou que a premiação da Copa do Mundo será de US$ 110 milhões. Embora o valor seja superior ao da edição anterior (em 2019 foram US$ 38 milhões), ainda não se compara com os US$ 440 milhões pagos na Copa do Mundo Masculina do Catar em 2022. A discrepância de valores evidencia a desigualdade de gênero no futebol. Essa disparidade também é observada na diferença de salários, condições de trabalho e oportunidades de patrocínio.

Apesar da derrota, o Mundial de 2023 conseguiu trazer a união dos brasileiros para torcer pela seleção feminina de futebol. A transmissão do primeiro jogo, Brasil x Panamá, bateu o recorde do Youtube de maior audiência de uma partida de futebol feminino da história da plataforma, com mais de um milhão de aparelhos conectados. Também houve incentivo político para estimular a torcida. O Governo Federal decretou ponto facultativo para seus servidores e mais de 15 estados da União tiveram expedientes em horários diferenciados em dias de jogos.

Após a eliminação, Marta fez um apelo: “Continuem apoiando, pois para elas [as jogadoras] é só o começo. Para mim, é o fim da linha”. Mesmo fora das Copas, Marta deixa uma herança imaterial para as novas atletas. Para Amanda Amorim, uma das criadoras do Instagram Empório do Futebol Feminino, página dedicada a divulgar as principais notícias da modalidade, Marta pautou a inclusão social de uma geração inteira de meninas.

 

A jogadora Marta e seus seis prêmios de melhor do mundo. Foto: Divulgação/CBF

 

História de jogadora

Jogar futebol profissionalmente e dar uma melhor condição de vida para a família parece o sonho de milhares de meninos pelo Brasil e também de meninas, como o de Emilly Kaillany, de 19 anos. A história de Emilly é bem parecida com a todos que querem se profissionalizar na modalidade. Começar a jogar na infância, mudar de estado para melhores oportunidades, viver longe da família, fazer peneiras em clubes.

 

Emilly jogando pelo Ceará. Foto: Reprodução Instagram

 

Para que Emilly pudesse jogar hoje, muitas mulheres que começaram no futebol antes dela precisaram persistir. No Brasil, a história do futebol feminino é marcada pelo artigo 54, Capítulo IX, do Decreto-Lei n° 3199, de 14 de abril de 1941, que proibia a prática da modalidade no país.

 

 

Trecho da matéria do jornal carioca A Batalha publicada em 23 de Junho de 1940, meses antes do decreto-lei nº 3.199. Fonte: Museu do Futebol

 

Após 38 anos, a proibição foi revogada, em 1979. Nesse meio tempo, a seleção masculina de futebol já havia ganhado três Copas do Mundo. Mesmo assim, praticar futebol ainda era difícil para as mulheres. Só quatro anos depois, em 1983, a modalidade foi regulamentada. Com isso, foi permitido que se pudesse competir, criar calendários dos campeonatos, utilizar estádios e ensinar nas escolas para as meninas. Antes disso, o futebol feminino era completamente amador no país. Já a equiparidade de pagamentos de diárias e premiações da CBF feitos aos jogadores e às jogadoras das seleções brasileiras principais chegou apenas em 2020.

A Copa do Mundo, disputada pelos homens desde 1930, teve sua primeira edição feminina em 1991, 61 anos depois. O registro do primeiro gol brasileiro na competição, marcado pela zagueira Elane, só foi disponibilizado ao público pela FIFA em julho de 2023. Antes disso, não havia disponível fotos nem vídeos do momento. Para tentar resgatar essa memória, até então inexistente, o Museu do Futebol recriou, em uma maquete, o gol de Elane na partida contra o Japão na Copa de 1991, vencida pelo Brasil por 1 a 0.

Os avanços, mesmo que a passos lentos, permitiram que Emilly se tornasse hoje uma atleta do time feminino profissional do Ceará. Em 2022, ela fez parte da campanha vitoriosa da equipe na conquista do título do Campeonato Brasileiro A2, garantindo ao clube um lugar na elite do futebol feminino nesta temporada. Ainda assim, os desafios continuam.

Emilly e a taça do Brasileiro A2. Foto: Reprodução Instagram

 

Incentivo

O futebol feminino no país já conta com campeonatos estaduais, campeonato brasileiro e participação em torneios internacionais, como a Copa Libertadores. Mesmo assim, a jornalista esportiva Amanda Porfirio acredita que há escassez de notícias na área. “Quando eu tinha que pesquisar sobre futebol não encontrava muita informação. As coberturas não tinham muito volume, eram muito gerais ou só começavam a partir das fases finais dos campeonatos. Eu só encontrava o resultado de um jogo, não o dia a dia de um clube”, relata Porfirio.

Diante dessa falta de informação, ela criou o futdasminas.com.br, primeiro site brasileiro dedicado exclusivamente para o futebol feminino. Para cobrir a Copa do Mundo Feminina FIFA 2023, disputada na Austrália e Nova Zelândia, o Fut das Minas conta com uma equipe de 18 mulheres e Porfirio foi até a Austrália trabalhar. “Vivenciar a última Copa da Marta com certeza foi o momento mais mágico da minha vida”, confessa. Todo o trabalho realizado no site ainda é feito voluntariamente.

Para Amanda Amorim, do Empório do Futebol Feminino, o progresso da modalidade passa por muitos fatores, como a atenção da mídia, a profissionalização das jogadoras pelos clubes, patrocínios e investimento das Federações. Amanda Porfirio afirma que a Federação Paulista é a mais avançada no quesito premiações.

“Por que os clubes de São Paulo são mais desenvolvidos? Porque a Federação Paulista investe nas competições de futebol feminino, o que acaba atraindo as equipes. A premiação total do campeonato paulista é de R$3,1 milhões. Qual clube não quer esse dinheiro? Enquanto isso, outros estaduais não têm nem premiação”, explica a jornalista.

 

Palmeiras é o atual campeão paulista. Foto: ETTORE CHIEREGUINI/AGIF – AGÊNCIA DE FOTOGRAFIA/ESTADÃO CONTEÚDO

 

O resultado do investimento aparece nas finais do Campeonato Brasileiro A1 de 2023. Os jogos, que começam a ser disputados no final de agosto, serão decididos por quatro equipes paulistas, São Paulo, Ferroviária, Corinthians e Santos. Mesmo assim, as jogadoras dessas equipes também enfrentaram as dificuldades do início.

Ana Carla Oliveira, atual meio campista do Santos, tem uma carreira consolidada no futebol, com títulos como o Brasileiro de 2016 e dos Jogos Mundiais Militares de 2018. Mas, na sua infância no Espírito Santo, só restava à ela jogar com os meninos na rua, pois, na época, não encontrava escolinha que aceitasse meninas. Na adolescência, mudou-se para o Rio de Janeiro para jogar no Boa Vista, já que o time começaria um projeto feminino. Porém, por falta de patrocínio, a iniciativa não vingou.

Para não sair do Rio de Janeiro, Ana ficou morando na casa de seu treinador e jogando com os meninos na escolhinha que ele dava aula. “Até que meu treinador conseguiu marcar um amistoso com time do Flamengo/Marinha. O pessoal gostou de mim e integrei a equipe. A partir daí comecei a ser jogadora profissional de futebol. Fiquei seis anos no Flamengo/Marinha e hoje estou no meu segundo ano no Santos”, diz a meio campista.

 

Ana Carla Oliveira em treino pelo Santos. Foto: Reprodução Instagram

 

Para que meninas sempre tivessem aonde jogar, Júlia Vergueiro e Fernanda Luiz inauguraram o Nossa Arena, primeiro espaço para práticas esportivas exclusivo para mulheres do país.  A iniciativa surgiu a partir da necessidade de ter um local seguro e acolhedor para o público feminino. Hoje, o Nossa Arena, na cidade de São Paulo, recebe mais de 800 mulheres semanalmente e 40 clubes para treinos nas quadras de futebol e esportes de areia em uma estrutura de 8500m².

“Nós sabemos por experiência própria [sendo atletas amadoras] como é difícil encontrar lugares que nos sentimos pertencentes, principalmente nos ambientes esportivos. Os homens são sempre maioria e nós uma espécie de coadjuvantes, quase vistas como intrusas. O Nossa Arena, tem o poder de reunir uma comunidade e mostrar que nós também podemos ser maioria e protagonistas em um espaço esportivo”, comenta a sócia-fundadora Júlia Vergueiro.

 

Espaço Nossa Arena, localizado na Barra Funda, em São Paulo. Foto: Reprodução Instagram

 

O Nossa Arena também é sede da primeira unidade feminina da Barça Academy Pro, projeto criado e ligado diretamente ao clube espanhol FC Barcelona, que aplica as metodologias do time europeu nos treinos de crianças e adolescentes. Na Arena, mais de 150 meninas, de 7 a 18 anos, treinam três vezes por semana e participam de campeonatos internos e externos.

 

Preconceito na área

Trabalhar em um espaço predominado por homens pode significar um desafio para as mulheres. “Eu falo que a mulher que nunca sentiu esse preconceito talvez não entendeu que aquilo foi uma violência”, pensa a jornalista esportiva Amanda Porfirio. Ainda na faculdade, em um projeto de TV Universitária Esportiva, Porfirio conta que levar a pauta do futebol feminino era sempre um grande problema, chegando ao ponto de um dos diretores dizer que “ninguém estava nem aí para falar de mulher”.

Contudo, com a ampliação da presença feminina na área, a jornalista já observa uma redução do preconceito, mesmo assim, ainda longe do ideal. “Tenho a sensação de que os homens só aceitam nossa presença, mas que, para eles, ainda não faz sentido estarmos lá. Talvez achem que é por uma cota ou uma reivindicação, e não talento e competência. Mas, salvo raras exceções, transmitir esportes femininos pelo olhar da mulher é diferente do homem”, declara.

Já para Amanda Amorim, a modalidade foi acolhedora e a reaproximou desse esporte que a encantava na infância. Seu distanciamento do futebol masculino ocorreu quando Amorim começou a perceber ações que não condiziam com o que acreditava. “Por exemplo, eu tinha medo de ir ao estádio sozinha, ouvir cantos homofóbicos, expressões racistas nas arquibancadas e presenciar violências físicas”, explica.

Amorim aponta que não encontra essas atitudes nos jogos de futebol feminino. “O público é muito mais inclusivo e as jogadoras se expressam em relação ao que precisam. Já fui ao estádio sozinha e nunca tive nenhum problema. Inclusive, vejo muito mais famílias presentes. Temos sempre que falar do preconceito, mas não podemos esquecer de falar desses pontos fortes que o futebol feminino traz”, conclui.

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