Alimento para corpo e mente

Quando os voluntários do Projeto VOAR chegam à Praça Nossa Sra. da Glória, Zona Sul do Rio de Janeiro, às oito horas da manhã, um grupo enorme de assistidos já está organizadamente reunido ao redor do espaço. São mais de 300 pessoas que esperam, calmamente sentadas, enquanto os participantes do projeto se alternam entre distribuir copos, pães e frutas. O que acontece ali, toda quinta-feira, é a oferta gratuita do café da manhã para pessoas em situação de rua, que buscam na praça a primeira refeição do dia. Assim como o Projeto VOAR, iniciativas como a Turma da Sopa de Niterói e o Projeto Anjinho Feliz, do Rio de Janeiro, levam à população assistida um dos direitos fundamentais do ser humano: o alimento.

Distribuição de comida na rua Moradores de rua muitas vezes enfrentaram o desemprego, o abandono familiar ou a dependência química e, segundo o estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2016, estima-se cerca de 102 mil pessoas nessa condição no Brasil. Não há pesquisas mais recentes nesse sentido. O Projeto VOAR atua três dias na semana: na segunda-feira a distribuição é no Aterro do Flamengo, na quarta-feira é na Praça São Salvador e quinta-feira na Glória, todos bairros da cidade do Rio de Janeiro. O projeto surgiu há 13 anos e foi criação de duas pessoas que, sozinhas, faziam a distribuição no Largo do Machado.

A iniciativa cresceu e hoje são 55 voluntários que se dividem no preparo de pães, leite, café e na compra de frutas, iogurte e leite achocolatado. Fernanda Feitosa, de 49 anos, é voluntária do projeto há nove anos e explica: “Tudo que a gente tem é doação nossa, de cada um, ou de voluntários que querem participar e não podem, então doam em dinheiro para as pessoas que preparam. A gente vai se organizando conforme nossas possibilidades”, enfatiza. Guilherme Bittencourt, de 28 anos, atua na organização das ações e explica que cada grupo estabelece sua dinâmica: “O objetivo de todos é distribuir o café da manhã e às vezes a gente consegue fazer mais. O café de segunda, por exemplo, aplica reike e nós, de quinta, fazemos a roda de oração”, relata. Reike é uma terapia natural japonesa para atingir o relaxamento e promover a cura por meio da transferência de energia com a imposição das mãos.

 

Fomento de empatia

A distribuição é feita com muita alegria e, apesar das dificuldades enfrentadas pelas pessoas ali presentes, todos demonstram gratidão e amor pelos voluntários. Não é incomum ver abraços na distribuição de alimentos e conversas pessoais entre os assistidos que já fizeram uma relação de Preparo de sopa social para distribuição de comida na rua confiança com quem distribui. Ana Maria David, de 63 anos, participa há dois anos e meio do projeto e conta: “Ganho absurdamente. Ontem passei de noite e encontrei um na rua e ele gritou ‘oi tia, você tá bonita hoje’. Se eu passo no Largo do Machado tem um que fala ‘oi, te amo!’ e isso não tem preço, é aquela coisa que toca o coração mesmo”, afirma.

O alimento é só uma das necessidades, como explicam os participantes, mas é uma das mais importantes para quem não sabe qual será a próxima refeição. Para os voluntários, participar da iniciativa é aprender a dar valor à vida, como conta Marúcia Netto, de 63 anos: “Estar em casa, ver uma televisão, ler um livro, comer a comida que você quer, são pequenas coisas do dia a dia que a gente acha que é normal. Para eles faz tanta falta que a gente aprende a dar valor à vida. A gente tem uma gratidão muito grande de estar tendo essa oportunidade de trocar energia. A gente sai daqui fortificado para, cada um, encarar o seu dia”, relata. Assim como ela, Andrea Gouvea, de 38 anos, defende que os verdadeiros ajudados são os voluntários: “É um aprendizado e um fortalecimento moral. Eu acho que é o exercer a palavra do Cristo independentemente da religião. É amor ao próximo e exercício de empatia, de pensar: se eu estivesse no lugar do outro, como eu gostaria de ser tratado”, defende.

 

Sopa como resgate

Assim como o projeto que distribui café da manhã, a iniciativa Turma da Sopa de Niterói atua com a promoção do resgate social por meio do alimento. Apesar do nome, o grupo faz muito mais do que sopa. Eles buscam, no momento em que fazem a entrega, estabelecer um diálogo de confiança, para entender as necessidades das pessoas que estão na rua. É isso que explica um dos fundadores, Lúcio de Oliveira, de 47 anos, que começou o projeto junto à outras quatro pessoas em 2014: “Nosso fim é o resgate social. A gente entrega a sopa para se aproximar do assistido, como forma de estar com ele e começar o nosso trabalho. Então tem dois times: o da entrega e o do social, que está lá para identificar oportunidades”, explica. O projeto conta com mais de 90 participantes ativos, que atuam em vários núcleos: preparação da sopa, entrega, resgate social e outras ações.

Distribuição de comida na rua A Turma da Sopa foi fundada há cinco anos, mas o time que a criou tem dez anos de experiência na entrega. Para promover de forma gratuita o resgate social, a associação conta com parcerias, como dentistas, oftalmologistas, advogados, assistentes sociais, psicólogos e médicos. Além do apoio jurídico e médico, eles também ajudam quem deseja sair da situação de rua, a partir de uma parceria com um abrigo e da identificação do interesse em conseguir trabalho. Maria Teresinha Vezzani, de 68 anos, é uma das que participaram desde o início do grupo e hoje é a responsável pelo preparo do doce distribuído, mas enfatiza que o trabalho é para retirá-los da rua: “É uma agulha no palheiro, mas se você tirar a cada dia uma agulha desse palheiro você termina com uma coleção de agulhas”, opina.

Batata, cenoura, abobrinha, inhame, chuchu, abóbora e carne. Com esses poucos ingredientes, Dona Geralda, a sopeira, já preparou mais de dez mil potes de sopa, utilizando quatro toneladas e meia de alimento que seriam jogados fora. O preparo é feito na sede, em Niterói, e os legumes são doações de alimentos que estão perto da data validade, de forma que se promove também o não desperdício. O processo é acompanhado por uma nutricionista e os assistidos recebem água, refrigerante, doce, fruta e pão. Ainda são disponibilizados itens de higiene pessoal, roupas, enxoval de bebê, entre outros. Marinete Tavares, de 67 anos, participa do preparo da sopa e conta: “Tenho muito prazer em fazer isso. A melhor parte é quando você chega em casa, coloca a cabeça no travesseiro e sabe que tem alguém tomando a sopinha que você fez. É um prazer danado”, relata com emoção.

 

Superando desafios

Distribuição de comida na rua Além de todas essas ações, a Turma da Sopa criou uma iniciativa que chama de Programa  CrêSer (Acreditando no Ser Humano), com o objetivo de instruir crianças em situação de vulnerabilidade para evitar que elas se tornem parte da população de rua. Aos sábados, acontece uma roda de leitura, com reforço escolar, xadrez e atividades culturais como idas ao teatro e cinema. Para as mães, também há aulas de inglês. Rosimere Goes, de 58 anos, ensina artesanato para as mães participantes. “No começo foi difícil porque elas achavam que não sabiam fazer e que não iam aprender. Comecei com o fuxico até perceberem que conseguiriam. Elas mesmas foram se espantando com a capacidade delas”, afirma Rosimere. Nos sábados as famílias participam do café da manhã e almoço, além de receberem cestas básicas mensalmente.

Roberto Bronze, de 65 anos, é um dos primeiros participantes e conta que no início o desafio era maior, já que eles não tinham cozinha e veículo próprio. Para ele, as muitas dificuldades não diminuem a importância do projeto: “Uma vez nós estávamos entregando a nossa sopinha no Jardim São João, bem no Centro de Niterói. Eu estava no carro da sopa e passou um senhorzinho. Falei: ‘amigo, quer tomar uma sopa?’; e ele disse: ‘claro, quanto é?’. Eu respondi que era de graça e que também tinha fruta, docinho, refrigerante, uma água. As meninas começaram a colocar as coisas nos bracinhos dele, ele olhou para o céu e disse ‘meu Deus, eu sou rico e não sabia’. Saiu todo feliz. Eu quase chorei”, diz. Entre as histórias que marcaram a vida dos voluntários, está a de um casal de idosos que conseguiu sair da rua com auxílio do projeto. Eles foram levados ao abrigo e, assim que conseguiram uma renda pela previdência, saíram do abrigo para oferecer vaga a outros.

 

Iniciativa de empatia

Outro projeto que resgata as esperanças a partir da empatia é o Instituto Anjinho Feliz, que foi criado por Miriam Gomes, de 55 anos, em 2008. Miriam afirma que sempre quis fazer um trabalho social e foi depois do falecimento dos pais que ela começou sua iniciativa: “Em 2005 perdi minha mãe para um câncer agressivo e em 2007 meu pai faleceu com um infarto do miocárdio. Me tornei pensionista militar e, com o dinheiro que recebi da herança deles, comprei a casa onde funciona a sede”, relata. A ação social funciona a partir da pensão que recebe e Miriam afirma que a homenagem é aos seus pais Edmundo e Olga.

Hoje, o Instituto Anjinho Feliz funciona no bairro da Cidade Nova, no Rio de Janeiro, e tem seis voluntários que trabalham no preparo alimentício. A entrega de comida para pessoas em situação de rua era semanal, mas por falta de recursos agora acontece de 15 em 15 dias e é feita a partir de doações. No início, Miriam fazia somente sopa, mas decidiu inovar e levar uma variedade de refeições, como macarrão à bolonhesa, estrogonofe com batata sauté, canja de galinha e, no inverno, a preferência ainda é pela sopa. Além da refeição, eles levam guaraná natural, açaí e itens como roupa e edredons. Quando a instituição recebe doações de salgados e biscoitos, tudo é disponibilizado para a população atendida. Míriam conta: “Procuro fazer pratos que eles não têm a possibilidade de ganhar na rua”.

Começar um projeto como esse não é fácil. A Anjinho Feliz enfrenta dificuldades para conseguir doações de alimentos e apoio financeiro. Segundo Miriam, as doações ainda não são suficientes para fazer a entrega com maior frequência. A criadora da iniciativa conta que deixou de pagar seu plano de saúde, por exemplo, para poder financiar a iniciativa. Segundo ela, não há arrependimentos: desde então, nenhuma gripe. Miriam diz que, apesar de tudo, ama muito o que faz: “Eu me alegro ao ver a alegria das outras pessoas. Fazer o bem faz muito bem”, afirma com tranquilidade.

Para se voluntariar e participar de qualquer uma das iniciativas, basta entrar em contato pelas redes sociais e buscar onde a ajuda é necessária. Tanto doações de alimentos não perecíveis ou alimentos utilizados para o preparo das refeições, quanto doações em dinheiro são aceitas pelas iniciativas Projeto VOAR, Turma da Sopa Niterói e Instituto Anjinho Feliz.

Nota: Em respeito ao direito de imagem reservado aos cidadãos, a Reportagem deliberou pela não veiculação de imagens da população em situação de rua.

2 Replies to “Alimento para corpo e mente”

  1. Conheço a Turma da Sopa de Niterói, e posso afirmar que é uma instituição séria e sem fins lucrativos! Só fazem o bem e de várias maneiras como diz a reportagem! Parabéns,TSN!
    Amo vocês!

    1. Regina, que legal o seu relato! Se você quiser acompanhar mais conteúdos nossos, pode seguir a gente no nosso instagram @revistaoprelo e ficar por dentro das novidades!

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