Uma música de fundo acompanha o movimento inicial da aula de yoga, enquanto as praticantes calmamente encontram seus lugares nos tapetinhos distribuídos pela sala. Luanda Achoa, de 40 anos, começa sua aula guiando os alunos para a posição inicial e para que encontrem o seu sankalpa do dia, ou seja, o propósito interior de cada um. A professora descobriu a paixão pelo yoga aos 18 anos, enquanto cursava faculdade, e começou a dar aula aos 20, se aprofundando na atividade corporal que hoje reúne muitos adeptos. Assim como o yoga, diversas filosofias orientais têm ganhado espaço no Brasil e a procura por atividades como o kung fu e pela prática da meditação demonstram o interesse que vai além do trabalho corporal. Alguns aprendizados trazidos pela cultura oriental são a reconexão interna com foco e tranquilidade, além de benefícios como a diminuição do estresse e da agitação.
Uma pesquisa da Associação Brasileira de Praticantes de Yoga já apontava 500 mil adeptos em 2011, número que cresceu ainda mais nos últimos anos, apesar da ausência de pesquisas recentes no campo. Luanda Achoa já acumula quase 20 anos como professora, além de ter estudado na Índia, terreno de origem e difusão do yoga. Para ela, o diferencial da atividade é que o objetivo é atingir não só o físico, como também o mental, buscando a sacralidade dentro de cada um e a espiritualidade no dia a dia: “É uma jornada incrível, mudou muita coisa no contato com o meu próprio corpo. É uma prática interessante porque é de respeito. A gente quer superar os nossos limites sem agressão”, defende.
A aula de uma hora desafia os praticantes em diversas posturas, mas o mais importante não é atingir a posição perfeita, e sim entender os limites do corpo. Coaracy Neto, de 55 anos, administra o The Museum of Yoga há 14 anos, um espaço em que os professores têm formas distintas de transmitir seu conhecimento, mas sempre seguindo o princípio da não violência: “Você respeita o seu corpo, respeita o quanto a pessoa pode fazer naquele dia. Não é nada do dia para a noite. É uma prática tranquila, mas constante”, declara. Ele ainda explica que o yoga pode incentivar uma conexão maior com si próprio e com os outros: “O significado de yoga é união. União com aquilo que “é”. Ou seja, com os relacionamentos, com nosso corpo, com as pessoas”, afirma.
Esporte com filosofia
A música leva os participantes de uma postura à outra enquanto Luanda instrui os alunos a focarem no seu sankalpa enquanto praticam. Ela acredita que o conceito, apesar de abrangente, tem o poder de trazer energias de realização: “É o propósito para o qual você dedica a sua prática. Pode ser algo que você quer realizar em qualquer esfera da sua vida, mentalizar e dedicar, pode ser uma pessoa que você ama, que te inspira. Pode ser até um sentimento que você queira trabalhar em si mesmo”, argumenta. Coaracy concorda que lidar com os sentimentos de forma mais saudável é um dos ganhos que pode ser atingido com a filosofia indiana: “A ideia de controlar as emoções é você ter um tempo de reação maior. Todo mundo vai ter uma notícia ruim. Tem duas maneiras de lidar com isso: você pode jogar debaixo do tapete ou você pode enfrentar. A ideia da prática de yoga é não jogar debaixo do tapete. Lidar com isso de uma maneira humana, passo a passo, de forma meditativa”, completa Coaracy, que também dá aulas nas três unidades do centro, nos bairros de Ipanema, Jardim Botânico e Copacabana.
Para quem pratica yoga, a aula não acaba ali. O The Museum of Yoga é um dos muitos espaços no Rio de Janeiro que levam os alunos a uma vida mais consciente e saudável, com propósitos que ultrapassam as paredes da sala de aula. Pensar no momento presente a aproveitar as pequenas coisas do dia pode parecer difícil para quem tem uma vida agitada, mas os alunos buscam levar o estado de espírito da aula para suas vidas pessoais. Exercitar o controle dos pensamentos é uma forma de prevenir transtornos mentais como depressão e ansiedade, que segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) já atingem 11 milhões de brasileiros. Coaracy acredita que esse pode ser um dos motivos para a busca cada vez maior pela prática: “A nossa sociedade quer saúde física, energia mental, um trabalho com um propósito. É isso que o yoga fala há cinco mil anos: buscar o nosso darma, que é o propósito. O fundamental é você acordar feliz de manhã com vontade de viver. Porque, se você está feliz nesse momento, a chance de ter ansiedade é muito menor”, opina.
Arte Marcial
Em uma viagem cultural da Índia à China, a arte marcial do kung fu foi ensinada de geração em geração e garantiu a proteção das famílias durante séculos. Segundo uma das lendas mais difundidas sobre a criação do kung fu, ele teria surgido em um mosteiro e sido criado por Bodhidharma no Templo Shaolin. Reza a lenda que o monge fez uma peregrinação da Índia para a China e descobriu que naquela região já se utilizavam práticas marciais de proteção, decidindo uni-las à meditação e a técnicas respiratórias. Existem divergências sobre a criação da luta, uma vez que existem estilos diferentes de kung fu, cada um criado por uma família, que surgiram por diferentes necessidades, fosse para se proteger do ataque de animais ou do saqueamento das aldeias.
Diferentemente do yoga, a prática do kung fu ainda não reúne tantos adeptos, mas Gabriel Guarino é um dos que passam à frente esse conhecimento tradicional no Rio de Janeiro. O mestre de kung fu dá aulas e também é atleta, acumulando 10 anos de treino e diversas premiações. Aos 26 anos, Gabriel é tricampeão brasileiro, campeão panamericano, campeão sul-americano e foi eleito atleta do ano em 2018, tendo participado do Mundial na China. Além de ensinar kung fu, Gabriel faz Doutorado na Pontifícia Universidade Católica (PUC), onde pesquisa a importância do ensino de tai chi chuan para crianças nas escolas chinesas. Ele defende que a prática é importante, mas que aprender sobre o contexto em que a arte marcial foi criada é essencial: “Acho que um dos grandes desafios nossos, de quem trabalha com arte marcial, é entender que a gente é profissional de cultura”, opina.
O atleta pratica o estilo Garra de Águia e explica que, em termos de história cultural, a luta é muito antiga e tradicional, mas começou a ser registrada por volta do século XII ou XIII: “O kung fu surge como necessidade de defesa, com várias técnicas usadas para se proteger. As famílias então começaram a organizar essas técnicas nessa época”, afirma. Há, inclusive, estilos que surgiram da observação de táticas de defesa animais, como o estilo do louva deus, criado por um mestre que analisou movimentos do animal para incorporar isso à luta marcial, como explica o atleta: “Quando digo ao meu aluno que a postura que ele deve fazer é a do ‘tigre pega a presa’, eu pressuponho que existe uma forma que o tigre pega a presa. É uma postura completamente parada que passa para uma muito rápida e depois parada novamente. A gente já viu o tigre fazendo isso? A gente ouvia histórias quando era criança de tigre pegando gente? Não, mas as pessoas que criaram essa rotina ouviam”, relata.
Harmonia
No kung fu, a união entre meditação, o uso das armas e a prática esportiva é muito significativa. As posturas têm, muitas vezes, nomes míticos e que estão embebidos na cultura chinesa. A maior parte dessas práticas orientais foi constituída em sociedades em que a maneira de pensar a relação entre pessoa, comunidade e ambiente era diferente da maneira que se conhece no mundo ocidentalizado. Muito do que o kung fu representa vem de doutrinas filosóficas como o taoismo, por exemplo, que pressupõe uma unidade entre ser humano e ambiente, de forma que abrange a vida em uma visão mais holística. Segundo Gabriel, o taoísmo está preocupado em observar o mundo e entender o seu movimento para agir junto a ele. “Tem duas formas de viver a vida: você pode brigar com as coisas ou entender que as coisas têm um movimento e você vai fazer parte deles. Não é abrir mão da sua liberdade, mas a sua liberdade é condicionada pelo ambiente”, afirma.
Quem pratica de kung fu não é somente um aluno: ele pode se tornar discípulo do seu mestre. A relação entre mestre – chamado de shifu – e seu discípulo é de amor fraterno e filial. Para Gabriel, esse aprendizado pressupõe uma responsabilidade e proteção que muda a maneira do discípulo de praticar o kung fu, dividindo um dos ensinamentos que aprendeu com seu mestre: “Uma vez eu estava treinando e virei para o lado sem olhar para onde estava indo, bati na parede e me machuquei. Então meu mestre me perguntou: ‘Gabriel, como é que você quer se mover se você não sabe o que tem em volta?’ Aí eu fiquei pensando nisso”, conta. Ele ainda explica que os ensinamentos de Confúcio, um filósofo chinês que teorizou sobre a política e as relações sociais, também estão presentes na luta: “O conceito confucionista de humanidade é ren (仁), que é o radical de ‘pessoa’ com o símbolo do ‘dois’. Isso significa que você só é pessoa quando você está em contato com o outro. Não existe humanidade individual. Ela é sempre coletiva”, afirma.
Caminhos espirituais
Para a visão de mundo oriental, as práticas do tai chi chuan, do kung fu, do yoga e da meditação, por exemplo, pressupõem uma relação com o ambiente e com os outros: o corpo não é uma identidade individual, é parte do todo. No budismo, esse princípio é um dos mais essenciais para enxergar o mundo. A religião, que também pode ser encarada como uma filosofia, parte da ideia de que os seres têm corpo, energia e mente. Criado na Índia, o budismo teoriza que o corpo é a manifestação física, a energia é a emoção/fala e a mente é universal de todos os seres. Ou seja, para eles todos os seres fazem parte de um mesmo campo, que nem sempre acessam, o da mente. É isso que Luiz Guilherme Eirado, de 51 anos, acredita. Luiz faz parte de um centro budista e explica que a crença surge de uma visão de todos os seres como iguais: “Amplia-se a bondade amorosa e a compaixão, ao sair desse estreitamento do eu, do ego, dessa visão de que eu sou separado do outro. Existe algo que permeia todo mundo. Os seres não são separados”, opina. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil contava com cerca de 200 mil praticantes do budismo em 2011, quando saiu o último levantamento acerca da religião.
Luiz é um dos participantes da sanga – grupo que faz parte da comunidade budista – do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB) de Botafogo, que segue a linhagem tibetana da filosofia. O grupo está espalhado por diversas cidades do Brasil e a sanga é orientada pelo mestre Lama Padma Santem. O participante, que já acumula 12 anos de contato e estudo com a religião, explica que o budismo surgiu na Índia mas foi se espalhando pelo Oriente, uma vez que o primeiro ser liberado, Buda Xaquiamuni, decidiu ensinar o caminho da iluminação. O primeiro Buda descobriu esse estado de nirvana através da investigação meditativa, após permanecer abaixo de uma árvore meditando por dias. Quando decidiu mostrar esse caminho aos humanos, ele elaborou as quatro verdades, como explica Luiz: “Os quatro saberes universais são: existe um sofrimento que todos os seres têm; esse sofrimento é construído por causas e condições; ele pode ser cessado; e, por último, existe um caminho. A partir daí, o caminho se desdobra em oito passos. O primeiro passo é não prejudicar os outros seres; o segundo passo é beneficiar seres, ajudar com compaixão, amor e alegria. Assim, nos conectamos com as causas que vão levar à felicidade universal, que está além de condições como espaço e tempo”, afirma.
O praticante de budismo tibetano pode encontrar seu caminho de iluminação a partir desses oito passos, mas Luiz não conta todo o segredo: “Tem toda uma visão do budismo tradicional que a gente não precisa iniciar meditando. Quando a gente começa, como a nossa mente é cada vez mais agitada, precisamos antes buscar a pacificação e a serenidade”, defende. É só a partir da pacificação pessoal que o praticante começa a entender as formas de não prejudicar e de beneficiar os outros, iniciando-se na prática meditativa. A meditação é muito comum para o budismo, mas existem muitas formas diferentes de praticar: pode-se meditar por mais ou menos tempo, de forma silenciosa ou de forma guiada. Para eles, a busca por serenidade é uma forma de encontrar um espaço em que podem ter uma visão mais ampla, acessando essa mente universal. A partir do relaxamento do corpo, da postura, da fala e da mente, Luiz diz que há um foco na mente e não no pensamento: “No budismo, temos a analogia de que os pensamentos são como se fossem as ondas no oceano. O oceano não são as ondas; são um mar amplo e sereno. Mas de vez em quando vem uma tempestade e as ondas crescem. As ondas são aspectos dele, mas o principal ainda é o oceano”, diz.
Adoro artes marciais, religiões e filosofias orientais. Gostei muito do artigo!
Achei o texto interessante demais.
Gratidão