Driblar grandes desafios diariamente é a realidade de muitas pessoas nas comunidades do Rio de Janeiro. Mais difícil ainda quando se trata de famílias humildes, cuja renda logo se extingue com as necessidades básicas. Há mulheres que acreditam na mudança dessa realidade e desenvolvem formas de levar para as favelas projetos lúdicos e educativos visando à inclusão social. Daiana Ferreira, diretora geral do Ballet Manguinhos, é uma delas. Formada em Educação Física, é também professora de balé e dança contemporânea. No tempo livre Daiana queria dividir ainda mais seus conhecimentos e oferecer, assim, uma oportunidade cultural. “Minha vontade era dar aula para algumas meninas, que eu sabia que ficavam na rua no seu tempo fora da escola”, contou ela. Em uma igreja perto de casa, criou turmas formadas por moradoras da Favela do Mandela, localizada em Manguinhos, Zona Norte do Rio. “Sempre vi muitos projetos sociais em diferentes áreas, mas não sabia o quão carente Manguinhos era desse tipo de iniciativa”.
Na primeira semana, Daiana teve um total de 80 alunas inscritas e hoje já são 250. A proposta do projeto é trabalhar com vulnerabilidade social. “Sabemos das chances de gravidez precoce, da evasão escolar, da proximidade com as drogas e buscamos auxiliar nisso tudo. Só de muitas vezes passarem o dia inteiro aqui já estamos eliminando a possibilidade de fazerem algo que não seria legal, caso estivessem à toa”, explicou ela. A iniciativa trabalha com alunos dos 6 aos 29 anos em suas 19 turmas de balé clássico. Além disso, ainda possui duas turmas de circo e uma turma apenas de meninos.
A intenção de Daiana é que o Ballet Manguinhos seja um trabalho que dê resultado. Não só para as que se destacam e vão para alguma grande companhia, mas também para as que permanecem na comunidade e passam a ter outra visão e proposta de vida. “Nem sempre somos a solução, mas tentamos trabalhar sempre nisso. Além do balé buscamos agregar conhecimento para as turmas” O último evento que realizou nessa linha foi a “Semana do Autoconhecimento”, quando foram oferecidas atividades como yoga, pilates, massoterapia e outras novas oportunidades.
O projeto já transformou a vida de muitas meninas, como Glória Lila Teixeira, de 17 anos. Ocasionalmente, ela e a mãe descobriram essa oportunidade no mercado ao ver uma das bailarinas uniformizadas por lá. “Eu já entrei no projeto com o desejo de me tornar uma bailarina profissional e a Daiana soube disso desde o primeiro dia. Após fazer minhas primeiras aulas de balé clássico, aos 12 anos, tomei essa decisão. Anos depois, fico feliz em ter alcançado esse objetivo, pois este ano fiz a prova no sindicato e agora tenho o registro profissional de balé clássico”, contou Glória.
O próximo passo, para ela, é fazer parte de uma grande companhia e cursar a faculdade de dança na UFRJ. Para Glória, chegar até aqui só foi possível graças ao primeiro contato com a dança. “O Ballet Manguinhos tem extrema importância para mim, sou muito grata a esse projeto por tudo que ele me propiciou, aprendi muito, tanto tecnicamente e artisticamente, quanto afetivamente. As experiências que pude viver foram únicas”, relata a jovem.
No Morro da Providência, no Centro do Rio de Janeiro, Cintia Sant’Anna também trabalha para que a arte seja uma ferramenta de mudança na vida de crianças. Hoje a atriz, descobriu sua paixão a partir do projeto “Tá na rua”, no qual ficou por 7 anos. Foi quando ela passou a circular em novos lugares e, assim se entender como mulher, conhecer seus direitos como cidadã, independentemente do lugar de onde veio. “Descobri a autoestima com 22 anos, o que foi muito impactante, pois só nessa idade vi uma série de coisas que poderia ter tido acesso antes, mas não tive por estar aqui dentro da favela”.
Cintia é professora do curso ‘Bando Teatro Favela’, cuja principal proposta é levar o acesso à arte para as crianças, trabalhar a autoestima e mostrar que é possível ser um profissional do teatro. “A vida das meninas não se resume a engravidar cedo e os meninos não precisam trabalhar apenas em empregos subalternos. Ninguém diz para a gente que após a escola nós podemos fazer um intercâmbio. Com 15 anos você já precisa trabalhar e isso é muito limitador dentro da nossa realidade. É muito importante que eu diga para eles que podem ser e fazer o que quiserem e que a situação atual deles não impossibilita o futuro”, enfatiza a professora.
Após muito tempo de ensaio, dedicação e de quebra de barreiras existentes durante o processo da montagem das peças, as crianças se apresentam em um grande espetáculo, que acontece no próprio morro. “Um dos maiores obstáculos é a leitura. Elas não têm esse hábito e não são estimuladas para isso, nem nas escolas, nem em casa. O percurso até compreenderem que são capazes e precisam disso é longo”. Os espetáculos mostram o resultado dos ensaios não só para os alunos, mas também para as famílias entenderem como eles são capazes de evoluir.
Com muita dedicação, as crianças se apresentam e alimentam cada vez mais a vontade de participar. Andressa dos Santos, uma das alunas, de 13 anos, sonha em viver da arte. “Eu queria ser modelo, mas agora eu quero ser atriz primeiro, para depois virar modelo! Eu os vi ensaiando há um tempo e quis entrar. Acho que o teatro vai me ajudar um pouquinho a me comunicar melhor com todo mundo”, contou com entusiasmo. Cintia luta para que as crianças nunca desistam dos seus sonhos e que, por meio do teatro, consigam se expressar com desenvoltura. “É muito importante que eu tenha essa iniciativa, porque sou daqui e tenho uma relação para poder fazer isso. Eles vão entender desde novos tudo o que não entendi”, afirma com orgulho a professora.
No complexo de favelas da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde vivem cerca de 140 mil habitantes, outra frente social também resgata vidas de crianças que vivenciaram momentos violentas. O Projeto Uerê possui uma forma diferenciada de ensino. Sua metodologia foi desenvolvida especificamente para crianças e jovens de escolas públicas da comunidade, que possuem bloqueios cognitivos e emocionais devido à exposição constante à traumas e violência.
A iniciativa possui ensino especializado com aulas de português, matemática, história, geografia, ciências e idiomas. Além disso, oferece três refeições diárias (café da manhã, almoço e lanche). São mais de 3 mil pessoas atendidas no projeto desde 1998. A idealizadora e fundadora é Yvone Bezerra de Mello, doutora em Filologia, pela Sorbonne, Políticas Públicas pela UFRJ e Direitos Humanos pela Loyola University, em Chicago. Dedicou os últimos 30 anos de sua vida a estudos na área de educação, iniciando sua pesquisa na África com crianças traumatizadas em países em guerra.
A principal missão da Uerê é proporcionar educação e instrução de qualidade para crianças e jovens em risco social. “Primeiro temos que avaliar seu processo cognitivo com testes orais simples, medindo: raciocínio, foco, velocidade cerebral, plasticidade cerebral, concentração, memória e emoção. Com esses dados se começa um trabalho de aquecimento cerebral correto, trabalhando os dois hemisférios do cérebro em equilíbrio”, contou Yvone. São muitos os casos de sucesso e um deles é o de M., que chegou ao Uerê sem saber ler nem escrever, aos 9 anos de idade. “É o que eu chamo de crianças zeradas: vocabulário muito pequeno, fala com palavras e não frases, não reconhecimento de letras ou números. A criança não tinha nenhum problema mental, a inteligência era intacta”, contou a educadora.
Segundo ela, nessa idade, a criança já teria que ter cerca de 10.000 palavras armazenadas na memória longa. “O trabalho foi no princípio com exercícios orais, entendimento e conexão entre elementos. A primeira fase levou cerca de três meses. Depois de um ano já conseguia ler e escrever o básico”, finalizou Yvone. Educação e arte são as principais ferramentas que tais projetos utilizam para tornar a vida de centenas de crianças melhor. Em locais onde escolas fecham as portas por semanas por conta da violência e inocentes morrem em operações armadas, mulheres fortes e determinadas tem como objetivo mudar essa realidade. Assim, plantam diariamente sementes de esperança para aqueles que, muitas vezes, não tinham mais perspectivas de um bom futuro.