Por Bruna Rezende Leite e Bruno Mouro
Dizer adeus a “painho” e “mainha”, pedir a benção de São Cristóvão, subir no pau-de-arara e aguentar por dias os sacolejos de um caminhão lotado de esperança. Esse foi o roteiro de milhares de nordestinos que largaram sua terra natal para tentar a vida no Rio de Janeiro, hoje, o segundo estado que mais recebeu migrantes nordestinos no país.
Há 75 anos, paraibanos, pernambucanos e cearenses trazem na mala rapadura, carne de sol, milharina e o sonho de uma vida melhor. A falta de tecnologia para comunicação proporcionou desencontros pelo bairro imperial de São Cristóvão, ponto final das caravanas e de início da espera pelos familiares. Assim, enquanto aguardavam seus conterrâneos na rodoviária improvisada, os migrantes trocavam as iguarias nordestinas por pratos de comida ou por estadia em pensões próximas.
De troca em troca, a feira foi nascendo. Ao observar o interesse da população pelos produtos típicos, os caminhões que buscavam os migrantes, começaram a trazer também as especiarias. Os nordestinos que já se espalhavam pelo bairro, tomaram a rua ao lado do pavilhão, que se tornou o maior aglomerado de suas tradições fora do Nordeste.
A veia nordestina pulsa forte no Rio de Janeiro antes mesmo dos encontros em São Cristóvão. Desde o começo do século XX havia migração nordestina para a cidade, mas essa só veio a ser reconhecida quando Raimundo Santa Helena leu, no coreto imperial, o Cordel da Libertação, comemorando o fim da 2ª Guerra Mundial. Desde que chegaram, a contribuição nordestina se faz presente, inclusive em grandes monumentos da cidade, como na construção da ponte Rio–Niterói e na forte influência da consolidação do samba na cidade.
Hoje, Duque de Caxias, Rio de Janeiro e São Gonçalo formam o eixo de cidades com maior número de nordestinos no estado.
O caminhão pau-de-arara e a trajetória até o RJ
Um símbolo das migrações nordestinas para a região Sudeste, o caminhão pau-de-arara foi o meio de transporte de milhares desses retirantes. Coberto com lona e com assentos de madeira, o veículo que passava longe das regulamentações básicas de segurança de trânsito, ainda era o único que chegava a algumas regiões do interior do Nordeste brasileiro.
O meio inspirou o músico Luiz Gonzaga a retratar a peregrinação dos seus conterrâneos na canção Pau-de-Arara. Além disso, os viajantes nordestinos e seus familiares pediam, em suas orações, proteção a São Cristóvão – padroeiro de motoristas e viajantes – nessa jornada.
“Minha vida é andar por este país…”
E de andança em andança, Francisca Nonato, a dona Chiquita, chegou ao Rio de Janeiro e fez com que suas raízes jamais fossem esquecidas. Todo domingo, ao pé de cada árvore da Rua Almirante Mariath, na Zona Norte da cidade, Chiquita colocava seus quitutes e especiarias à venda na Feira de São Cristóvão, que nessa época ainda funcionava fora do pavilhão.
“A cada crise, o que a feira fazia era crescer mais”, explica Chiquita ao lembrar do local como uma venda de mantimentos baratos para os trabalhadores da construção civil.
Contudo, Chiquita também conta que nem sempre a feira foi bem recebida pelos cariocas, chegando a sofrer ameaças de ser extinta, devido ao barulho e ao odor das especiarias. Em entrevista, ela retorna aos tempos das passeatas que rodavam a cidade com o objetivo de fazer com que o povo local conhecesse a cultura nordestina e ajudasse a lutar pela feira.
Dessa forma, a feira ficou e a cultura se expandiu. As barracas que antes estavam do lado de fora, adentraram o Pavilhão de São Cristóvão em 2002, com grande inauguração. Ainda nos dias de hoje a cultura nordestina continua se expandindo. Em janeiro de 2020 foi inaugurado um novo polo da “feira dos paraíbas”, em São Gonçalo. Irailde de Alcântara, moradora da região central de São Gonçalo, é uma baiana “arretada”, que há vinte anos chegou em solo fluminense. Ela faz com que o cuzcuz de milharina com côco a acompanhe diariamente, seja em Salvador ou em São Gonçalo. Para sua filha, Shirley Martins, a cultura não está só no sabor, está também no corpo e na vivência. É nela que Shirley mantém as tradições nordestinas trazidas pela mãe paraibana, que chegou ao Rio há 56 anos: “Nós gostamos muito de forró e eu sou dançarina profissional. Pra quem é descendente de nordestino, o forró faz parte da gente”.
Lutando contra o preconceito ao som de Luiz Gonzaga
As tradições trazidas ao Rio de Janeiro pelos migrantes que chegavam diariamente não se limitaram ao bairro imperial. Data-se em 1970 o início do que viria a ser um grande fator de reconhecimento desse povo na cidade, o Forró Forrado. Em dois salões que se misturavam às obras do metrô do Catete, Adélio Silva iniciou um trabalho árduo junto a nomes como Zé Gonzaga e Marinês com a finalidade de difundir essa contagiante melodia, que ao surgir era muito discriminada pela sociedade carioca.
Era de se notar o sucesso das primeiras casas de forró, que ficavam lotadas de nordestinos e curiosos. Assim, as gravadoras viram uma oportunidade que ajudou a expandir o ritmo na cidade. “Quando as casas estavam cheias, as gravadoras mandavam artistas como Fagner, Chico Buarque, Tom Jobim, e esses grandes nomes da música deram visibilidade e ajudaram a quebrar com o preconceito que sofremos. Eles não vinham só fazer publicidade, eles também se apaixonavam pela música e pela dança e se tornavam cada vez mais assíduos”, conta Adélio, que até o início da pandemia, realizava eventos forrozeiros tanto na feira de São Cristóvão como em salões espalhados pela cidade.
nas casas de forró forrado, no Catete – RJ.
Além dos grandes artistas da época, o gosto por dançar e cantar os sons vindos do Nordeste também contou com a dedicação dos muitos migrantes que dia após dia desembarcavam na Cidade Maravilhosa. Lembra-se do Chico, ou do Severino, da portaria? Muitos nordestinos trabalhavam na recepção e zeladoria dos prédios em um momento onde a elite carioca não via toda aquela festa com bons olhos. Esses trabalhadores “infiltrados” fizeram muito pela valorização da imagem do forró como patrimônio histórico brasileiro.
A dinâmica era bem pensada. Os porteiros, sabendo da resistência existente, passaram a distribuir nos seus locais de trabalho convites aos integrantes da classe média da cidade. O objetivo era chamar os moradores da orla de Copacabana, Ipanema e Leblon para os salões, de modo que pudessem constatar com os próprios olhos que os espaços em que o Forró se fazia presente eram locais de alegria e não apenas aglomerações de pessoas, álcool e esbórnia, como era prejulgado por muitos. E funcionou. A mistura da sanfona, triângulo e zabumba conquistou o coração da elite carioca, que já não se via sem um arrastapé aos fins de semana.
Cinco décadas depois, pode-se dizer que hoje o forró já não enfrenta mais o preconceito de antes, no entanto, a sua trajetória até chegar a esse ponto deve servir de exemplo de um dos maiores problemas sofridos por essa gente que chegou em São Cristóvão e dedicou sua vida ao trabalho no Rio de Janeiro. Seja em qual for a esfera, o povo nordestino teve que ser aguerrido desde o primeiro dia na cidade. Todas as conquistas sempre foram à base de muita luta. Seus empregos eram subvalorizados, suas moradias quase que demarcadas e a expressão de sua cultura, por muito tempo foi alvo de ameaças. Nada veio de graça e, se o Nordeste hoje ganha cada vez mais locais de representatividade na sociedade, isso é fruto do seu povo, que nunca abandonou suas raízes.
Cultura “cabra da peste” ganha visibilidade nos grandes centros
Ao pensar em tradições nordestinas, a gastronomia, as danças e as festas folclóricas são imediatamente lembradas. No entanto, a cultura tão plural desse povo também tem um grande espaço no meio da arte. Diversos museus e centros culturais cumprem um papel importante no resgate das cores de uma região, que por muitas vezes foi desvalorizada pelo preconceito. A cultura do Nordeste também é arte. Ela se apresenta em telas, esculturas e artesanatos presentes em locais que antes as deixavam em segundo plano em relação a obras do exterior e de outras regiões do país.
O Museu Janete Costa de Arte Popular, localizado no bairro do Ingá, em Niterói, é grande responsável por elevar o patamar e difundir os costumes nordestinos. Sempre levando exposições cuidadosamente elaboradas pelo curador e cenógrafo Jorge Mendes, o espaço que carrega o nome da importante arquiteta pernambucana que ajudou a reformular a urbanização da cidade, vem priorizando exposições com obras e artistas da região.
“Aqui no Janete Costa buscamos oferecer uma experiência de qualidade. Nossa equipe de monitores é treinada nos meses que antecedem as exposição e as visitas são guiadas conforme o público. Nosso objetivo é fazer com que esse público compreenda a história que está sendo contada, e não apenas que admirem as obras ali presentes”, defende Daniela Magalhães, atual diretora do Museu.
Uma das últimas histórias contadas nos mínimos detalhes no espaço do Ingá foi “Ceará, terra que ilumina”.
“O nome escolhido para a exposição passa pelo contexto histórico da abolição, onde esse estado foi o primeiro a libertar seus escravos e “iluminou” os demais com seu exemplo. Tudo isso foi contado passando pela história de Juazeiro, sem deixar de abordar a religiosidade, a migração e figuras históricas, como Padre Cícero”, explicou Jorge Mendes ao contar sobre o trabalho de campo nesses lugares, antes de pensar a disposição de cada pequena peça a compor a exibição.
Além da programação principal, o Museu também conta com um ambiente para venda de obras no segundo andar, onde todo o dinheiro vai para o artista. A existência de partes interativas para o público também se destaca, agregando um valor lúdico e colaborando para a fixação do que foi assimilado na visita.