Há 18 anos acontece a Festa Literária Internacional de Paraty no Estado do Rio de Janeiro e, por conta da atenção que atrai, a cidade vira um terreno cultural repleto de pessoas que produzem e apresentam sua expressão artística. Este ano, por conta da pandemia de Covid 19, a edição da feira será virtual, dos dias 3 a 6 de dezembro, e toda a programação está disponível no site da FLIP. Nesta matéria, você pode conferir um pouco do que aconteceu em 2019, quando a FLIP homenageou Euclides da Cunha, autor que contribuiu significativamente para a narrativa sobre o Nordeste brasileiro, em específico sobre a Guerra de Canudos.
Como jornalista do jornal O Estado de São Paulo, Euclides foi convidado a cobrir o conflito que aconteceu no interior da Bahia em 1897 e, anos depois, publicou o livro “Os Sertões”, em que fez um relato sobre o que aconteceu no Arraial de Canudos, em uma guerra onde tropas do Exército Brasileiro massacraram os seguidores do beato Antônio Conselheiro. O que os baianos buscavam à época preocupava muito o governo republicano recém instaurado no Brasil. O direito sobre a terra, para eles milagrosa, os salvaria da seca dos sertões e da exclusão social.
Em meio a esse cenário de debate, autores independentes encontraram um terreno fértil para plantar suas obras literárias. A Festa Literária Internacional de Paraty é palco para o mundo, onde a mídia está atenta ao surgimento de novos artistas e o público, ávido por cultura. A obra mais famosa do autor, “Os Sertões” foi uma narrativa dividida em três partes – A Terra, O Homem, A Guerra – que demonstram as interseções entre temas latentes da sociedade baiana na época do conflito, mas que também são metáforas para a Paraty atual. A cidade apresenta um espaço literário cheio de agentes culturais na luta por apoio e incentivo às suas produções.
A Terra
O calçamento pé-de-moleque das ruas, onde não passam carros, leva leitores do mundo todo a tropeçar durante o caminho para as mesas e debates da FLIP. Sediada na Costa Verde do Rio de Janeiro, a feira acontece todos os anos e leva interessados pela literatura e arte à cidade pequena, que mais parece fazer parte de um livro de História do Brasil Colônia. Ao mesmo tempo em que caminham com dificuldade, os visitantes têm seu andar musicado por diversos artistas de rua e as crianças se concentram em esquinas para a apresentação de teatro ou de palhaços infantis. Em meio ao alvoroço, autores independentes não se acanham ao declamar poesia aos quatro ventos, sempre atraindo olhares curiosos dos pedestres.
Participante ativo do cenário cultural e histórico de Paraty, Daniel de Jesus já completou mais de 14 anos de incentivo à leitura na cidade. Daniel transformou uma Kombi em sebo cultural e recebe doações de livros para troca e venda. Seu empreendimento já passou por diversos momentos marcantes, chegando a ter sede física onde se promoviam exibições de filmes e ensaios teatrais. Hoje, o livreiro crê que a Kombi que o acompanha às feiras e eventos itinerantes, apesar de não ter motor, é a melhor forma de chegar ao público. No Centro histórico de Paraty ele expõe livros, revistas e vinis, mesclando títulos em português, inglês, francês, entre outros. Diversidade é o que não falta em seu material, que consegue em doações e trocas para incentivar o desapego: “Minha filosofia de vida não é comprar e revender, é proporcionar cultura em um espaço de rua”, defende orgulhosamente.
A partir do sebo, o movimento literário da cidade dura bem mais do que os quatro dias da feira anual e faz parte da rotina dos moradores. Agora, o plano de Daniel é ampliar o espaço, que possui até palco na parte superior, para envolver a população em exibições de audiovisual: “Eu só vivo disso, é a minha aposentadoria e minha sobrevivência. Digo para os clientes que quando eles compram um livro comigo, eles se tornam cúmplices dessa história, porque eu estou juntando dinheiro para comprar uma outra Kombi”, garante.
Compondo também parte do espaço de Paraty, a Arte Naif tem ganhado terreno no Brasil inteiro, apesar de ser mais comum no Rio de Janeiro e nos estados do Nordeste. Todos os anos, uma exposição é feita na cidade, presenteando os moradores com obras coloridas e cheias de personalidade. Em 2019, a exposição de pinturas e obras levou à cidade 68 artistas que retrataram mais de 60 títulos da literatura brasileira. Foi criada por um pintor francês, o nome é inspirado na palavra “ingênuo”, de mesmo idioma, uma vez que seus artistas buscam uma prática com menos regras e conceitos acadêmicos e mais liberdade. André Cunha, de Recife, é um dos pintores de naif e ele conta com uma coletânea de pinturas inspiradas na obra de Jorge Amado, onde coloca o autor como parte participativa de sua própria obra. O recifense conta que nem sempre foi pintor, era tributário, mas hoje só vive de arte: “Trabalhar com arte é muito gratificante, não pelo dinheiro, mas pela questão do criar. Acho que nasci para isso, eu amo inventar”, conclui.
O Homem
No cenário editorial brasileiro, publicar não tem sido fácil e, no ano de 2018, o setor livreiro sofreu sua maior crise. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o número de livrarias diminuiu em 29% em dez anos, do período de 2007 a 2017. Das mais de 21 mil lojas que fecharam as portas durante esses anos, 971 eram do Rio de Janeiro, como mostra o levantamento, que levou em conta números da Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Os dados são de estabelecimentos que vendiam produtos de papelaria, livros, jornais e revistas, incluindo grandes nomes como Saraiva e Fnac, que sozinhas já somam 30 lojas fechadas. O fato é que vender livros no Brasil tem se tornado um desafio cada vez maior, mas isso não assustou muitos dos autores, que conseguiram construir um percurso na literatura a partir de muita força de vontade.
Apesar das perspectivas alarmantes, há profissionais que não se abalam com esses números e movem montanhas para contar suas histórias. Esse é o caso de Paulo Cavalcante, de 59 anos, paraibano que vem anualmente do Nordeste vender seus livros na feira. Isso já acontece há 15 anos. Ele terminou seu primeiro livro em 1992, mas só conseguiu publicá-lo em 2004, depois de ter pedido demissão de seu emprego e vendido uma moto para pagar os custos de impressão. Com esses 500 exemplares de “O Martírio dos Viventes”, divulgou seu trabalho em festas e levou seus livros à FLIP de 2005. No ano seguinte ele já havia comprado uma segunda edição da obra e tinha dívidas dessa impressão, mas não desistiu de ir à festa literária: “Comprei uma passagem só de vinda e cheguei com 16 reais no bolso. Trouxe 120 livros e consegui vender 112, o que me garantiu a volta para casa”, relata com emoção.
Todos os anos, Paulo marca presença com seus tamancos e roupas tipicamente nordestinas em Paraty, onde declama o cordel de sua autoria para chamar o público. Em 2014, para comemorar sua décima FLIP, ele viajou de moto de Campina Grande ao Rio de Janeiro, percorrendo 73 cidades, doando exemplares pelo caminho. Dessa viagem, que ele descreve como “sofrida e magnífica”, saiu a finalização do romance “Um Andarilho em Busca de Cultura”. Questionado sobre o tema do livro, confessa: “Essa é a minha história, é minha biografia. O andarilho sou eu”, afirma. Ao perceber que a Festa Literária Internacional de Paraty atraía muitos estrangeiros, ele fez curso de francês por cinco anos e estuda inglês há dois. O autor já tem três romances, um cordel e um dos livros traduzido ao inglês, que foi lançado por ele na cidade de Frankfurt, Alemanha, em 2018. Ele completa: “Essa busca é infinita. O andarilho segue seu caminho firme, com olhar decidido, sempre atrás de cultura”, diz.
Assim como ele, a cearense Anilda Figueiredo percebeu o gosto pela literatura desde cedo. É professora, cordelista membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) e defensora da presença feminina na literatura. Ela conta que no Nordeste, nos anos 50, o cordel era uma maneira de alfabetizar os alunos, uma vez que o acesso aos livros era mais difícil, além de ser fonte de informação disponível para todos. Há mais de 30 anos Anilda escreve cordéis e hoje se divide entre a divulgação e as aulas que dá sobre o assunto. Apesar da experiência de anos, ela não sabe decidir qual parte é sua preferida: “O que eu gosto mais no cordel? Tudo. Para escrever é uma beleza, a gente se entrega como se estivesse gerando um filho. Cada um você ama como se fosse o primeiro”, afirma calmamente.
Telma Maria Frizzera, de 70 anos, é outra autora que já percorreu um longo caminho com suas obras e está lançando o novo livro “Sob a Luz de um Pirilampo”. A autora escreve há mais de 40 anos, mas começou a publicar em 2004, fazendo parcerias com a Editora Alternativa e a Livraria Gutenberg, além de fazer a divulgação de forma independente, sobretudo no Rio de Janeiro. Os livros de Telma são de gêneros diversos, passando por poesia, romance, contos cômicos, infantil e ficção. Apesar de escrever desde cedo, terminou a faculdade de Letras agora e relata: “Eu terminei a faculdade com essa idade! A gente tem que fazer o que a gente gosta e eu vou continuar, porque enquanto a mente está trabalhando, temos que aproveitar”, opina.
A Guerra
Nesse cenário de quase guerra por uma oportunidade de publicar livros, entre editoras que também estão em crise, muitos autores conseguiram uma forma alternativa de concretizar suas palavras no papel. Lutaram por seu espaço na literatura contemporânea por meio da autopublicação e da criação de uma micro editora própria.
A mineira Carola Castro, de 32 anos, é autora de primeira viagem e criou sua própria editora para publicar seu romance, a Txai Editoração. Seu primeiro livro foi publicado em dezembro de 2018, com o tema do sertão nordestino. À época, sem imaginar que Euclides da Cunha seria o homenageado pela FLIP, escolheu o tema pelo interesse pessoal no assunto, que surgiu quando leu “Grande Sertão Veredas”, de Graciliano Ramos. Foi somente aos 30 anos que se deu conta da importância do povo de Canudos para a história brasileira e começou a escrever o livro “No Sertão Azul”. Nele, a protagonista é uma menina que sai de Contagem/MG, cidade natal da autora, e viaja a Canudos/BA para aprender sobre o sertão: “Apesar da escrita do Euclides ser impecável, as novas gerações não lêem por causa da linguagem. Minha pretensão era trazer esse tema para o tempo atual e adaptar modestamente, uma história que acredito que precise ser contada”, defende.
Assim como ela, Murilo Martins edita e publica seus títulos independentemente e este ano foi organizador da Casa da Porta Amarela, uma das casas parceira da FLIP, que uniu em um só lugar quase 30 editores. Ele é autor independente e já tem 12 títulos de zines e cinco livros. Na Casa, existem vários modelos de editoras independentes que podem ter estruturas mais complexas (contando com equipe e distribuição) ou mais simples, em que o autor/editor é responsável por tudo. Além de fazer esse trabalho, Murilo se alegra ao ver que o espaço independente tem crescido com os anos: “Estar aqui novamente, ano após ano, mostra que as pessoas estão conseguindo vender e ver que vale a pena vir”, confirma.
A curitibana Alekalko é uma das autoras independentes que esteve no espaço e defende que o contato com o público é um dos maiores pilares para os autores independentes: “O interessante da publicação independente é que você começa a falar diretamente com o público que te consome e vê que há espaço para seu material, mesmo que não seja em uma editora grande”, frisa. Seus livros são publicações com suporte distinto, que usam o design para contar uma história, seja a partir das dobras do papel ou da disposição do texto, segundo relata.“Meus livros são autobiográficos, têm um pouco de poesia e um pouco de humor ácido. Eu tenho essa coisa de estudar o suporte físico, porque não gosto da ideia de gastar e desperdiçar tanto papel”.
Além das editoras independentes, uma outra tendência no mundo editorial que tem surtido efeitos para novos autores é a autopublicação. Essa alternativa garante a publicação de títulos, com custo pago pelo autor, por uma editora que tenha uma estrutura de revisão, diagramação, edição, divulgação, lançamento e distribuição. A Editora Labrador é uma das que faz esse trabalho e que esteve presente na FLIP com alguns dos escritores de seu portfólio. Um dos autores que escolheram esse caminho é P.J. Maia. Ele lançou seu livro “O Espírito Perdido” digitalmente no Estados Unidos e, depois, fisicamente no Brasil pela Labrador: “A autopublicação é uma plataforma para a gente ter uma chance de ser lido, de alcançar nosso público, desburocratizando o processo”, relata.
Patrícia Pappalardo também fez a escolha da autopublicação para seu primeiro romance “Adônis e Afrodite”, que traz a mitologia grega para o cenário atual. A autora tem o livro como uma grande realização e explica que publicar assim foi bem viável: “Tem que ter algum caminho mais fácil porque é bem difícil chegar até as editoras grandes na sua primeira publicação”, defende. A.N. Bruno, que publicou “A Escolha de Gundar”, concorda que as editoras tradicionais oferecem um processo muito longo e por isso escolheu investir em sua própria obra: “O que eu vivi foi uma erupção, porque há anos eu quero contar histórias e autopublicar foi uma resposta a isso, também porque eu acreditava no meu material”. Os três autores estiveram na Festa Literária Internacional de Paraty pela primeira vez e levaram seus próprios livros. Eles acreditam que o mercado editorial está mudando e abrindo espaço para conteúdos novos, principalmente no meio digital, como explica Bruno: “Se a gente conseguir conversar com toda a rede e se ajudar mutuamente, muita gente sem voz pode passar a ter voz”, finaliza.