Arte por Mariana Bittencourt
Por Bruna Rezende Leite, Ana Luiza Vasconcellos e Luis Felipe Granado
“A Covid-19 levou o meu marido, a minha renda e a minha casa”, conta Sheila Martorellli, 56, trabalhadora do carnaval há 18 anos. A costureira era responsável por confeccionar, em seu próprio ateliê, fantasias que encantaram a avenida do samba. Essa tradição foi colocada em sono profundo em 2021 pela segunda vez em mais de cem anos, com o cancelamento da maior festa brasileira. Uma pausa que significou para Sheila e outros 40 mil trabalhadores de base do carnaval a perda completa da fonte de renda e sustento. “A gente segue acumulando dívidas sem conseguir saber quando vamos poder pagar. É muito tempo longe do quanto a gente ganha”, ela conta.
Em tempos normais, o ateliê de Sheila estaria funcionando a todo vapor, em meio à correria dos últimos ajustes. Acinturar os vestidos das baianas, colar as últimas peças de paetê e conferir se todas as fantasias haviam sido devidamente entregues. Da mesma forma estariam os barracões das escolas de samba: repletos com a agitação de pintores, decoradores, escultores, cenógrafos, eletricistas, soldadores, carpinteiros, chapeleiros, costureiros e aderecistas. Mas, com a interrupção das atividades em 2020 devido à pandemia, todos eles tiveram que encontrar outra fonte de renda com as habilidades que antes atendiam à grande festa.
Para quem vive intensamente os quatro dias de carnaval, não imagina que a preparação da festa começa muito antes de fevereiro. Em março anterior ao próximo desfile, as equipes formadas por todos esses profissionais já estão trabalhando. Todo esse esforço afeta diretamente o desenvolvimento e manutenção das cidades pelo país. Em 2020, por exemplo, somente o estado do Rio de Janeiro movimentou no feriado de carnaval mais de R$4 bilhões e empregou mais de 75 mil pessoas, entre trabalhadores temporários e fixos.
Sheila, que contava mensalmente com essa renda, se realizava produzindo peças para o Salgueiro, Mocidade, Mangueira, União da Ilha e São Clemente. Ela relembra com alegria os anos em que viu suas criações na avenida. “O carnaval é o meu sustento, é a realização do meu trabalho, da minha profissão, a minha satisfação. Eu amo quando alguém olha para uma fantasia e diz: Nossa, perfeito. Está lindo! E quando essa fantasia passa na avenida, é uma alegria enorme para mim”, recorda.
Rafael Vieira, 39 anos, é outro profissional que englobava esse expoente. Pintor artístico de alegorias e fantasias, já exercia seu trabalho no carnaval carioca há 12 anos. Ao menos seis meses do ano eram dedicados ao carnaval: “Este ano estávamos todos contando com o trabalho e tivemos que nos virar”, relata. Vivendo da arte de uma forma diferente, ele tem buscado trabalho pintando murais e lojas, mas entende que há alguns funcionários mais específicos da indústria que sobrevivem somente com a renda do carnaval. Questionado se espera retornar à atividade principal para o próximo ano, não hesita: “Com certeza. Esses trabalhos não chegam perto da renda do carnaval, que também é uma ajuda muito boa para minha equipe”.
Recorde de faturamento, público e contágio
Em um momento em que a ideia de uma pandemia era satirizada em blocos por Ipanema e Copacabana, a cidade do Rio de Janeiro contou com 2,1 milhões de turistas, um aumento de 31% na circulação em 2020, segundo o Balanço da Folia Carioca, realizado pela Riotour. A cidade, que é considerada um dos principais destinos no mundo para quem busca viver a alegria da festa, vivenciou picos de contágio pela Covid-19 menos de um mês após a folia. E quem pensava que todo o isolamento e distanciamento seria superado na segunda semana de fevereiro de 2021 se deparou com um ano de cancelamento do feriado e aumento da média móvel de mortes, com o maior índice desde o surgimento da doença no Brasil.
Devido a esse panorama grande parte dos blocos de rua se organizaram para pedir aos frequentadores que não saíssem para comemorar o carnaval. Em setembro do ano passado, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) e os presidentes das agremiações já haviam decidido não realizar o desfile no Sambódromo em fevereiro. Entretanto, a decisão não é fácil para quem trabalha há anos na preparação da festa. Muitos tiveram que se reinventar para garantir o sustento de cada dia.
“Quando a pandemia começou, houve o bum da máscara. Todos estavam precisando e ninguém tinha máscaras em casa, então essa foi a atividade a qual a gente se dedicou. Isso deu uma boa ajuda nesse período, mas quando as máscaras voltaram a ser vendidas no comércio, essa demanda caiu. Então nós começamos a fazer tudo o que aparecia que desse algum tipo de renda”, conta Sheila sobre as primeiras atividades empreendidas na busca de superar os efeitos da pandemia.
A prefeitura do Rio de Janeiro anunciou, em edital, uma ajuda econômica aos profissionais do carnaval de rua no dia 4 de fevereiro, garantindo auxílio a essas pessoas. A iniciativa partiu da Secretaria Municipal de Cultura e da Riotur, e visa a divulgação e exaltação dos blocos de rua, bem como a produção de conteúdo como documentários, catálogos e outras mídias para estimular o setor.
Jorge Silveira, 40 anos, é filho de carnavalesco e há dez segue os passos do pai construindo carreira nos ateliês e barracões de escola de samba. Ele conta que durante esse período de incerteza sua escola desenvolveu um departamento social cujo objetivo é ajudar os profissionais da comunidade que estão desempregados ou se viram sem a renda do carnaval. “A gente começou uma campanha de arrecadação de mantimentos e roupas para poder direcionar para essas pessoas. Criamos uma espécie de vaquinha social para ajudar a pagar os profissionais do Barracão, aqueles que vivem cotidianamente construindo o desfile. Com o tempo essa campanha ganhou uma força tão grande que também começamos a distribuir para comunidade do entorno da quadra. A gente se ajuda o máximo que pode, mas até isso tem um limite. No início nós tínhamos uma expectativa de que a pandemia não fosse durar muito tempo, mas agora sem uma data para terminar, a gente começa a se preocupar”.
É folia, trabalho, História e cultura
Jorge Silveira, além de carnavalesco, é um grande estudioso da cultura popular brasileira. Ele compara o momento festivo a uma grande festa literária, em que o eufemismo sai de cena para que a sátira, a ironia, a antítese e a hipérbole possam atuar. Para Jorge, é durante esses cinco dias de festa que a cultura, história e política dos 27 estados brasileiros se encontram para apresentar as metáforas do ano que se foi e as do que ainda está começando.
“A festividade do carnaval no Brasil vai muito além da importância econômica. Ela é, sobretudo, a grande possibilidade de autoafirmação identitária da população brasileira. A gente tem, durante a festa do carnaval, a possibilidade de qualquer pessoa poder representar a sua cultura, a sua vontade, a manifestação da sua identidade livre dos dogmas tradicionais e de preconceitos. Nos barracões de escola de samba, grande parte dos profissionais que constroem o desfile não chegaram à universidade. Muitos deles aprenderam suas profissões no ofício cotidiano e é no carnaval que essas pessoas têm a possibilidade de demonstrar a sua pureza estética, a sua sensibilidade artística, o seu querer e a sua identidade. De maneira mais crua, é o único momento em que o rico senta na arquibancada para ver o pobre desfilar vestido de Rei”, explica Jorge.
Avenida virtual
Neste ano em que não tivemos o tradicional desfile das escolas na Sapucaí, o Carnaval Virtual ganhou espaço para conquistar ainda mais corações. A iniciativa, que começou em 2003 com o objetivo de apresentar trabalhos autorais de novos profissionais do setor, surgiu da vontade das mais de 78 escolas de expor seus projetos para o público, de modo que o orçamento não fosse uma limitação para a criatividade. A apresentação dos enredos virtuais que geralmente acontecem no mês de agosto, tomaram o horário e data dos carnavais “reais” de avenida para manter acesa a chama de quem ainda espera o retorno dos desfiles na Apoteose.
Ricardo Hessez, é carnavalesco e em 2020 foi o vencedor da competição virtual com o enredo “Fantasma da Ópera”, pela agremiação Flor de Lótus. Ele conta que a modalidade funciona como uma apresentação de slides, na qual cada imagem apresenta uma alegoria e, junto com o samba enredo, forma o desfile virtual. “Gosto muito de musicais justamente por ter uma aproximação muito grande com o carnaval. No musical você tem atos diferentes, que no carnaval seriam os carros, tem toda a questão cênica dos musicais, música, a indumentária, as esculturas, os cenários. Pensando nisso, eu resolvi juntar as duas paixões numa coisa só. É meu musical favorito e apesar de ser uma história muito dramática para carnaval, eu gostei do desafio, deu certo e acabei ganhando.”
Em 2021, Hessez levou para a avenida virtual o enredo “E a Mocidade descobriu: Paraíso é a Padre Miguel”. O samba é em homenagem à escola Mocidade Independente de Padre Miguel, no qual traz referências aos desfiles históricos sobre paraísos indígenas. Hessez já conta com dois títulos em sua trajetória no carnaval virtual e também atua como carnavalesco das escolas Botafogo Samba Clube e Intendente Magalhães, ambas do Grupo de Acesso. Ele alerta que com o cancelamento da festividade em 2021, as escolas menores podem desaparecer, o que, para ele, seria uma grande perda para a cultura do Rio.
“As escolas são centro de acolhimento e manifestação da cultura negra da cidade. É onde as pessoas aprendem a batucar, a compor e a desenhar. É um ambiente cultural no meio das comunidades, além de ser patrimônio cultural da cidade. Os barracões dependem muito do poder público para que essas atividades possam continuar. Sem verba da prefeitura o desfile acontece pelo amor da comunidade”, ressalta Hessez.
Frente a esse cenário, o carnaval virtual será peça fundamental para manter viva a cultura carnavalesca. Os vídeos das apresentações estarão disponíveis no YouTube (https://www.youtube.com/c/CarnavalVirtual/videos).
“No dia de hoje a gente estaria descabelada, contando as horas para entrar na avenida. O carnaval faz falta emocionalmente, financeiramente, tudo! Não é só folia, sabe? É trabalho”, Sheila Martorelli