O folclore em quadrinhos

Arte da capa por Leonardo Portugal

Por  Júlia Cruz

 

Em 2014, o ilustrador paranaense Walkir Fernandes foi encarregado de uma missão. A pedido de um amigo e junto à Antonio Eder e Carol Sakura, o estúdio de animação Dogzilla, do qual é sócio, deveria organizar uma história em quadrinhos (HQ) sobre as lendas urbanas da cidade de Curitiba. Assim surgiu “Bocas Malditas – Curitiba e Suas Histórias de Gelar o Sangue”, coletânea com narrativas pensadas e escritas por mais de 30 artistas curitibanos. “Exploramos o nosso local, nossa cultura, nosso jeito de falar, nosso frio e nossa comida. Foi uma temática que gostei bastante de trabalhar”, relata Walkir.

“O fantasma do teatro Guaíra”, “O lobisomem do Tarumã” e “Fantasma do Pilarzinho” são algumas das histórias presentes na coletânea. Walkir observa que desenhar o local em que mora traz o sentimento de valorização e identificação.

Capa da HQ “Bocas Malditas – Curitiba e Suas Histórias de Gelar o Sangue”, coletânea organizada pelo Dogzilla Studio

Segundo o jornalista Andriolli Costa, as lendas urbanas são narrativas hiperlocais e delimitadas por um período de tempo. E o que diferencia a lenda da lenda urbana é o espaço de atuação, sendo as lendas urbanas circunscritas em metrópoles. Também há uma pequena distinção entre os enredos contados nos dois temas. Para as lendas urbanas, são expostos medos típicos das grandes cidades, como o feminicídio e sequestros, representados, por exemplo, nas figuras da “Loira do Banheiro” e da “Van dos Palhaços”, respectivamente. E as lendas falam mais de medos interioranos, como a desapropriação de terras.

Muitas vezes confundidos ou usados como sinônimos, lendas e mitos não são o mesmo. Diferentemente das lendas, os mitos são narrativas mais universais. Por esse motivo, Andriolli considera os mitos anteriores às lendas numa escala hierárquica. Ou seja, os mitos não precisam de um local ou data específica para serem de conhecimento geral. É o que ocorre com o mito da “Mãe do Ouro”, difundido em cidades interioranas do Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Na HQ “Todo Ouro Que Eu Puder Carregar”, a lenda se passa em Macaé, no interior do Estado do Rio de Janeiro.

 

Capa da HQ “Todo Ouro Que Eu Puder Carregar”, de Marcus Leopoldino e Daniel Franco

Escrita por Marcus Leopoldino e ilustrada por Daniel Franco, “Todo Ouro Que Eu Puder Carregar” conta a história de um escritor que decide voltar ao vilarejo onde passou a juventude para encontrar o corpo de um fazendeiro que desapareceu procurando a Mãe do Ouro. Marcus explica que escreveu a HQ baseada no “causo” que adorava ouvir quando criança. A oralidade é uma característica do folclore, assim como o desconhecimento ou anonimato do autor e seu caráter espontâneo, tradicional e regional.

A palavra folclore é um aportuguesamento da expressão folk-lore. Em inglês, folk significa “povo” e lore significa “ciência” ou “saber”. Assim, folclore quer dizer o saber de um povo. Andriolli Costa define folclore como “os modos de sentir, pensar e agir de um povo que caracterizam a sua identidade e que são transmitidos pela tradição”.

Andriolli comenta que elementos da cultura pop, como as histórias em quadrinhos, são grandes agentes com o poder de transmitir o saber popular. “O folclore é tipo aquele móvel que está em casa há muito tempo. É tão próximo e tão familiar que, às vezes, esquecemos dele. É necessário alguém mexer nele um pouquinho, mudar de lugar, para você dar valor novamente para aquilo. E a cultura pop pode fazer isso com o folclore”, argumenta.

Mais do que fazer relembrar figuras folclóricas, as HQs podem trazer à tona histórias pouco conhecidas pelo público. É o que faz o escritor e ilustrador Vinícius Galhardo ao se debruçar sobre lendas indígenas. O autor revela que seu interesse pela cultura dos povos nativos veio por meio de uma conversa com sua prima, criança na época. “Ela me falou da Vitória Régia e, ao ler sobre, foi amor à primeira vista para mim. Com isso, perguntei-me por que a gente não aprende mais nas escolas sobre a riqueza da cultura indígena?”

A partir desse questionamento, Vinícius começou a estudar o tema. Para respeitar a cultura indígena, entrou em contato com diversos povos para consulta, como guarani, kaimbé, jeripancó e koiupanká. “É uma linha tênue entre trabalhar mantendo a identidade e poder ter a liberdade poética de mudar algumas coisas”, justifica. Vinícius usa o conhecimento adquirido para escrever seus livros, sempre com foco no público infantil, como a HQ Irupé, que fala justamente sobre a lenda da vitória régia.

 

Capa da HQ “Irupé”, de Vinícius Galhardo

Contudo, não é preciso ser criança para ler HQs. “Mandinga!” é um exemplo. O quadrinho escrito por Guilherme Smee e ilustrado por Danilo Aroeira é um terror com classificação indicativa de 18 anos. Mesmo conhecido por seus projetos infantis, Danilo não é estranho aos quadrinhos adultos, já que é seu gênero favorito de leitura.

Em “Mandinga!”, Danilo ilustra a lenda da “Cotaluna”, uma sereia demoníaca que seduz suas vítimas e as leva para o oceano a fim de devorá-las. A HQ ainda mistura a história da “Cotaluna” com outras lendas, como as clássicas “Mula sem cabeça”, o “Saci Pererê” e “Boto cor-de-rosa”, e algumas menos conhecidas, como “Maragigoana”, “Matinta Pereira” e o “Deus Tupã”.

 

Capa da HQ “Mandinga!”, de Guilherme Smee e Danilo Aroeira

Danilo assegura que o diferencial de “Mandinga!” é a abordagem das narrativas folclóricas a partir do ponto de vista das próprias lendas, imaginando como viveriam no meio dos seres humanos, além de interpretá-las como pessoas do século XXI. “O Saci é um grupo de hackers e a Mula sem cabeça é um padre excomungado”, pontua o ilustrador.

O mercado de HQs

Para publicar as histórias em quadrinhos há um alto custo de produção, segundo os autores. Em 2022, o preço do papel subiu significativamente. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, a produção nacional de linhas editoriais chegou a somente 65% da capacidade nos meses de janeiro e fevereiro. Para o consumidor, o resultado são livros, revistas e HQs mais caros e menor variedade de publicações.

Com o objetivo de conseguir financiar a impressão das histórias em quadrinhos, muitos autores realizam campanhas de financiamento coletivo, ou crowdfunding, atividade que consiste na obtenção de capital com o auxílio de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas interessadas na iniciativa.

“Todo Ouro Que Eu Puder Carregar”, de Marcus Leopoldino e Daniel Franco, contou com financiamento coletivo para sua produção. Gabriel Calfa, sócio da Risco Editora, responsável pela publicação da história, diz que o custo impede até que algumas ideias sejam realizadas.

Outra preocupação para quem trabalha com HQs foi a paralisação de eventos presenciais por causa da pandemia de Covid-19, restringido as vendas ao meio digital. Com “Mandinga!”, Danilo Aroeira admite a surpresa com o sucesso on-line, mas compartilha que, de forma geral, é difícil viver de HQs somente com as vendas pela internet.

A volta dos eventos traz esperança para o reaquecimento do mercado. Enquanto isso, os autores continuam o trabalho de perpetuar o folclore brasileiro por meio da nona arte, as histórias em quadrinhos.

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