Conhecida mundialmente por humanizar o tratamento psiquiátrico, a médica Nise Magalhães da Silveira, recebeu reconhecimento oficial póstumo ao entrar para o Livro dos Heróis e Heroínas do Estado do Rio de Janeiro, conforme determinou a Lei estadual nº 9800, de 20 de julho de 2022.
Psiquiatra revolucionária, Nise da Silveira foi pioneira na indicação da terapia ocupacional e assumiu papel fundamental na luta antimanicomial ao combater o isolamento e internação para tratar pessoas em sofrimento mental.
História
Nascida em Maceió em 1905, a alagoana teve uma trajetória marcada por grandes desafios. Nise foi a única mulher em sua turma, de 158 alunos, na Faculdade de Medicina da Bahia. Inspirada em Carl Jung, um dos pais da psiquiatria, ela foi uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no Brasil. Mudou-se em 1927 para o Rio de Janeiro, onde fez sua especialização em neurologia e psiquiatria, e foi aprovada em concurso para trabalhar no Hospital da Praia Vermelha.
Além de se posicionar no âmbito da medicina, a psiquiatra também era ativa politicamente. Na década de 30, foi presa pela ditadura do governo Vargas, após ser denunciada por uma enfermeira do hospital por “ligações com comunismo”. Passou 18 meses na cadeia, onde teve a companhia da militante Olga Benário, companheira do líder comunista Luís Carlos Prestes, e do autor Graciliano Ramos – que a transformou em personagem no seu livro “Memórias do Cárcere”.
Nos anos 40, após ser libertada, voltou a atuar no campo da medicina no Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, e a combater as medidas invasivas de tratamentos psiquiátricos, como o eletrochoque e a lobotomia.
Em sua fotobiografia “Nise da Silveira – caminhos de uma psiquiatra rebelde”, ela contou ao escritor Luiz Carlos de Mello que, quando foi readmitida no serviço público, queriam que ela aprendesse os “tratamentos inovadores”. O médico que a ensinaria demonstrou o eletrochoque em um paciente contido na maca e, assim que a convulsão parou, pediu para trazerem outro para Nise praticar. Quando um novo doente estava em sua frente, foi solicitado que ela apertasse o botão que aplicaria o choque. “Não aperto”, ela respondeu.
Essa “rebeldia” teve como consequência a humilhação por colegas de profissão, mas Nise seguiu em frente. Em 1946 fundou a ala de terapia ocupacional, área menosprezada pelos outros médicos e negligenciada dentro do hospital. Ali encontrou um propósito, porém precisou reformular tudo que faziam nessa seção. Após trocar tarefas domésticas compulsórias, como lavar roupa e varrer o chão, por oficinas que envolviam arte e imaginação, conseguiu criar o lugar adequado para desenvolver um modelo humanizado de tratamentos psiquiátricos. Até mesmo a forma como se referia aos assistidos era diferente. Nise os chamava de “clientes”.
Os materiais produzidos dentro da Seção de Terapia Ocupacional serviram de estudo sobre os pacientes. Nise notava que pinturas abstratas, de pouco a pouco, tomavam formas semelhantes às mandalas – um tipo de desenho geométrico circular com diversos significados culturais e religiosos. Esse feito chamou a atenção de Nise, pois sua equipe afirmava que não era possível que os “clientes” produzissem algo como uma mandala sem que tivessem sido apresentados previamente.
Nise, então, decidiu enviar os trabalhos para seu mentor, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, cuja teoria deduzia que as formas circulares representavam uma maneira de reorganizar a mente. Jung, ao receber as cartas de Nise, respondeu-a confirmando as suspeitas: eram mandalas. A quantidade de material artístico produzido no hospital foi tão grande que, em 1952, Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente. Anos depois, em 1956, fundou a Casa das Palmeiras, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, um local para aqueles que tivessem alta da internação pudessem continuar o tratamento.
Nise não foi só a pioneira na área da terapia ocupacional, também foi a primeira psiquiatra a pesquisar sobre a influência de animais no comportamento dos pacientes, a partir de um vínculo emocional. Chamou essa prática de “afeto catalisador” e batizou os animais de “co-terapeutas”.
Apesar de algumas vezes a relação entre os “clientes” e os animais não ser tão amistosa, em outras, a interação despertava carinho e zelo até mesmo daqueles mais agressivos.
A doutora, por sua vez, também era uma amante dos animais, e possuía vários gatinhos de estimação.
O Legado
Nise faleceu em 1999, com 94 anos, devido a um quadro de insuficiência respiratória grave gerado por uma pneumonia. Entretanto, seu legado continua vivo.
Instituto Municipal Nise da Silveira: O antigo Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro mudou de nome em 2001, em homenagem à doutora. Em outubro de 2021, o Instituto deu adeus às internações, após dar alta no último paciente. Os antigos internos foram realocados em residências terapêuticas e continuaram recebendo acompanhamento psiquiátrico. Com o fechamento do hospital, a previsão é que, em breve, o Instituto Municipal Nise da Silveira vire um parque municipal.
Casa das Palmeiras
Fundada em 1956 para os pacientes em alta da internação, a Casa das Palmeiras oferece a continuidade dos tratamentos por meio da terapia ocupacional.
Vera Macedo, diretora técnica da Casa das Palmeiras, que trabalhou diretamente com a psiquiatra Nise da Silveira, explica que a “Terapia Ocupacional é o nome burocrático. Aqui chamamos de ‘emoção de lidar’. Essa frase veio de um cliente que estava fazendo um gatinho de crochê e quando terminou disse: ‘Ai, que emoção de lidar!’ e a Nise achou essa palavra perfeita”.
Vera também esclarece que o centro psiquiátrico não é apenas responsável pelo tratamento dos clientes, também é um centro de pesquisas e de reuniões do Grupo de Estudos Carl Gustav Jung – que discute as teorias do psiquiatra. Grande parte dos trabalhos artísticos produzida na Casa das Palmeiras vai para o Museu de Imagens do Inconsciente.
A Casa oferece oficinas de desenho, pintura, modelagem, xilogravura, artes aplicadas, letras e expressão. Além disso, todas as sextas-feiras os “clientes” se divertem com os bailes. Mas para manter essa estrutura, Vera conta com a ajuda das pessoas que podem contribuir. “O legado é de todos e precisa de doações”, conta a diretora.Boneca de pano feita por um cliente na oficina de Artes Aplicadas – Foto: Marco Serra
Criado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente hoje conta com um acervo de mais de 350 mil obras e tem a maior e mais diferenciada coleção do gênero no mundo. As principais obras estão tombadas pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Também conta com a biblioteca e o arquivo pessoal de sua fundadora, Nise da Silveira.
Nise na cultura
Como uma grande personalidade, digna de receber o título de Heroína do Estado do Rio de Janeiro, Nise da Silveira continua sendo lembrada em exposições e homenagens. O Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), no início de 2022, fez uma exposição com o tema “A Revolução pelo Afeto”, exibindo os trabalhos dos “clientes” da psiquiatra. A exposição no espaço físico já acabou, mas ainda é possível acessá-la de forma virtual e fazer um passeio 360º.
Ademais, por meio da sétima arte, ainda podemos conhecer melhor a história dessa heroína, contada no filme “Nise: O Coração da Loucura”, lançado em 2015 e dirigido por Roberto Berliner. A obra se passa no período em que Nise – interpretada por Glória Pires – é libertada do cárcere e volta à ativa no campo da medicina, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro. O filme retrata sua luta para conseguir cuidar dos pacientes de forma digna, até eles se tornarem seus “clientes”. Uma história de destaque foi a de Adelina Gomes, internada aos 21 anos, considerada agressiva pelos médicos. Quando começou a frequentar o atelier do hospital psiquiátrico teve uma mudança de comportamento notável. Adelina produziu por volta de 17.500 pinturas ao longo de sua vida.
Recentemente, Glória Pires voltou a interpretar Nise da Silveira na novela “Além da Ilusão”. Na trama, a doutora apresenta tratamentos alternativos ao personagem Matias, que, após atirar e matar sua própria filha, sofreu um surto psicótico devido à culpa.
A história e os ensinamentos de Nise vêm sendo cada vez mais disseminados. Essa grande personagem, tanto na luta antimanicomial, quanto na humanização dos tratamentos psiquiátricos, hoje é considerada uma heroína, mesmo que não concordasse com a ideia de “títulos”.
“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.” – Nise da Silveira.
Muito bom texto. Biografia bem construída, haja vista o número de caracteres efetivamente publicados.
Excelente! Permita-me corrigir a nacionalidade de Carl Gustav Jung. Creio ter sido grafado indevidamente sueco ao invés de suíço.