A ciência da vida

Arte da capa por Rayssa Sanches

 

Por  Júlia Cruz

A incerteza diante da possibilidade de engravidar fez com que a médica cardiologista Letícia Sabioni investigasse a saúde de seu aparelho reprodutor. Sua história começou antes, aos 25 anos passou por uma cirurgia para tratar a endometriose profunda que acometia seus ovários e outras partes da pelve. Assim, ela ainda vivia a angústia da dúvida sobre a possibilidade de gerar um filho. E foi apenas uma década depois que Letícia teve a comprovação de que não conseguiria engravidar de maneira natural. Então, ao final de 2019, procurou a medicina de reprodução.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que uma a cada seis pessoas no mundo tem problemas de fertilidade, independentemente de região ou renda.  A OMS considera infertilidade quando um casal busca engravidar de forma natural há mais de doze meses sem sucesso. As causas de infertilidade podem ser femininas, como endometriose e síndrome dos ovários policísticos, masculinas, como a varicocele e azoospermia, combinadas em fatores femininos e masculinos, ou ainda sem causa aparente, que aflige cerca de 2% a 5% dos casais. A medicina de reprodução se apresenta como a especialidade médica que se dedica ao diagnóstico e tratamento de problemas relacionados à fertilidade e à reprodução humana.

A endometriose é caracterizada pela presença do endométrio (tecido que reveste o interior do útero) fora da cavidade uterina. Essa doença afeta de 10% a 20% das mulheres em idade fértil. Entre aquelas com dificuldade para engravidar, até 50% apresentam endometriose. No Brasil, famosas como Anitta, Tatá Werneck e Larissa Manoela já revelaram diagnóstico da doença, que não necessariamente pode causar infertilidade.

 

Anitta, Tatá Werneck e Larissa Manoela, respectivamente

 

A cardiologista Letícia, mencionada inicialmente, após tratar sua endometriose, iniciou o processo em busca da tão sonhada maternidade. Foi diagnosticada com baixa reserva ovariana, adenomiose, síndrome do folículo vazio e ainda precisou se submeter a uma cirurgia para a retirada da trompa esquerda no início de 2021, pois continuava com foco de endometriose.

 

Sabioni precisou passar por cinco ciclos de estimulação ovariana, tomando os remédios indutores para que os folículos nos ovários pudessem crescer. De 30 óvulos gerados após os ciclos, apenas dois se tornaram embrião, um funil estreito e pouco comum. Mesmo com as possibilidades limitadas, Letícia realizou a fertilização in vitro com um dos embriões. Em março de 2022, chegou a notícia mais esperada, Maria Clara estava a caminho.

 

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Letícia Sabioni grávida da Maria Clara

 

Simone Nogueira, ginecologista, com mais de 20 anos de experiência na área de reprodução assistida, foi a responsável por acompanhar o caso de Letícia. Nogueira conta que “doses de ansiedade, perseverança e determinação” invadiram tanto a médica quanto a futura mamãe durante o processo, mas hoje, com a chegada da Maria Clara, “nada tira o sorriso no coração delas”.

 

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Letícia Sabioni, Simone Nogueira e a bebê Maria Clara, aos seis meses de idade

 

Outras possibilidades da medicina de reprodução

O avanço da ciência possibilitou que a medicina de reprodução seja mais do que ajudar casais a engravidar. Também é a alternativa de preservação da saúde reprodutiva de homens e mulheres, além possibilitar o planejamento familiar.

A faixa etária entre 35 e 40 anos é considerada decisiva para fertilidade feminina. Isso porque as mulheres nascem com uma reserva ovariana predeterminada que, ao longo da vida, vai sendo reduzida em quantidade e qualidade. Estudos indicam que a mulher apresenta maiores índices de fertilidade entre os 20 e 24 anos. Aos 35 anos, ela alcança metade das chances que tinha aos 25 anos, e vai diminuindo gradativamente. Aos 40 anos, a probabilidade de engravidar é a metade confirmada aos 35 anos.

O congelamento de óvulos é uma opção para quem pensa em adiar a maternidade ou guardar óvulos saudáveis, como no caso de mulheres que necessitem passar por tratamentos médicos com risco de infertilidade, exemplo a quimio e a radioterapia.

 

Processo de captação de óvulos para congelamento. Reprodução Instagram: @simonenogueira

 

O mesmo acontece com os homens. Aqueles que precisem passar por tratamento oncológico, ou possuem alguma condição que comprometa a fertilidade podem optar pelo congelamento de sêmen. Mas, ao contrário das mulheres, os homens não nascem com quantidade defina de Eles produzem novos gametas a cada 70 dias e repetem esse ciclo até depois dos 65 anos.

Óvulos, sêmen e também embriões congelados passam por processo de vitrificação e são mantidos em nitrogênio líquido, sem limite de tempo. Aos 54 anos e sem filhos, a atriz Jennifer Aniston expôs, em entrevista no final de 2022, que “gostaria que alguém tivesse dito a ela para congelar os óvulos”. A cantora Juliette tem 33 anos e sem intenção de ter filhos agora, por isso, já disse que pretende congelar seus gametas. “Até os 35 anos vou congelar meus óvulos e, até os 40, gerar”, afirmou em entrevista para O Globo em abril de 2023.

 

Jennifer Aniston e Juliette, respectivamente

 

A reprodução assistida também permite que outra pessoa conceba o filho para casais sem a possibilidade de utilizar o próprio útero, atividade chamada de barriga solidária ou útero de substituição. Apesar do termo “barriga de aluguel” ser popularmente conhecido, está errado, pois o Conselho Federal de Medicina (CFM) proíbe que a barriga solidária tenha ganhos econômicos.

 

Os graus de parentesco definidos pelo Conselho Federal de Medicina são:

 

 

O óvulo utilizado em gravidez por útero de substituição pode ou não ser da mulher que irá gerar o bebê. No caso do óvulo doado ser de um banco, diferentemente da barriga solidária, é necessário o anonimato.

Quando qualquer um dos gametas não for de qualidade apropriada para fecundação, é recomendada a utilização de um banco de óvulos ou sêmen, como no caso da atriz Viviane Araújo. Ela engravidou aos 45 anos por meio de uma fertilização in vitro de um óvulo doado e o sêmen de seu marido.

 

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Viviane Araújo e o marido, Guilherme Militão, comemorando os seis meses do pequeno Joaquim, em março de 2023

 

Na utilização de bancos, mesmo com o anonimato, as clínicas são obrigadas a disponibilizar para os pais o histórico médico e descrições físicas do doador. A ginecologista Simone Nogueira comenta que “o banco e o médico especialista escolhem o óvulo ou sêmen adequado, mas a receptora e/ou casal podem se recusar por diversos motivos, a exemplo da altura não ser compatível com o histórico da família, e aguardar outra opção mais parecida com o biotipo familiar. Mas é incomum, pois procuramos por características próximas. De qualquer forma, a receptora e/ou casal participa da escolha. O que realmente não é falado é a identidade do doador ou doadora”.

 

Estigma feminino

Os homens são responsáveis por cerca de 40% dos casos em que um casal tem problema para engravidar, é o que afirma a OMS. Contudo, Simone Nogueira e Cristiane Coelho, ginecologista especializada em reprodução assistida há mais de dez anos, concordam que, mesmo com essa estatística, a responsabilidade pela infertilidade recai muito sobre a mulher.

“Não existe infertilidade de um só, sempre é do casal, pode ser exclusivamente masculina ou feminina, mas sempre é do casal”, declara Simone. A ginecologista acredita que a pressão da sociedade em cima da fertilidade feminina se dá porque é a mulher quem gesta e tem o hábito de ir regularmente ao médico.

Cristiane Coelho acredita que o machismo está relacionado ao assunto, pois é comum associarem fertilidade à virilidade. “Quando o homem tem alteração no espermograma ou problema de fertilidade masculina, as pessoas podem achar que ele não é viril ou é impotente. Com as redes sociais e a informação, a realidade vem mudando aos poucos. Agora é mais comunicado que infertilidade masculina não tem relação com potência sexual, mas ainda é muito cultural na sociedade ter esse machismo”, explica. Para Cristiane, a disseminação de informações é uma forma de combater esse preconceito.

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Análise de espermograma

 

Cristiane continua esclarecendo que o homem também precisa entrar na atmosfera de preparação para a gravidez do casal. Para ter um bebê saudável é necessário espermatozoide e óvulo de qualidade. “O homem não pode ser só apoio da mulher, ele também é responsável pela saúde do bebê. Sabemos que quanto melhor o sêmen, menor é a taxa de aborto e bebês nascendo prematuros”, garante a ginecologista.

Ela observa, inclusive, os problemas de fertilidade costumam interferir mais na saúde mental das mulheres. “Vejo muitas pacientes inférteis com ansiedade e depressão, até sendo medicadas. Também vejo nos homens, mas a questão ainda é mais sentida na pele pelas mulheres”, relata. Para todas as pacientes que chegam em seu consultório, ela recomenda acompanhamento multidisciplinar, com nutricionistas, a prática de esporte e um psicólogo. Dependendo da situação, até indica também tratamento psiquiátrico.

Simone Nogueira concorda que, em um casal heterossexual, a ansiedade acaba atingindo mais a mulher, pois “em um tratamento de fertilização, mesmo a causa da infertilidade sendo um fator masculino, as medicações são nas mulheres e é ela quem acompanha com ultrassom, é ela que é submetida à sedação e coleta de óvulos por pulsão vaginal, procedimentos esses que são invasivos. Então, tudo acontece no corpo da mulher e o homem acaba ficando de expectador”.

 

Custos da reprodução assistida

A medicina de reprodução é conhecida por seu custo elevado. Cristiane Coelho menciona que os valores variam muito entre clínicas, já que há diferença na tecnologia e equipamentos utilizados e que esses fatores chegam a interferir na taxa de sucesso do tratamento. “Diria que a média de preço de uma fertilização in vitro numa clínica mais popular seja 15 ou 20 mil reais e, em uma clínica de grande porte, seja entre 25 e 30 mil reais”, avalia. Entre as razões para o tratamento custoso estão a necessidade de importação dos insumos e sua validade curta, sendo usado apenas para um ciclo de estimulação ovariana.

O Sistema Único de Saúde (SUS) possui hospitais com especialização na medicina de reprodução, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. Porém, Simone Nogueira, que também atende no SUS, acredita que o número de hospitais e clínicas públicas não são o suficiente para atender à demanda. Por isso, ela defende a necessidade de políticas voltadas para a área, uma vez que a infertilidade é um problema de saúde pública. “Se para pacientes do consultório, em três ou quatro itens o plano de saúde não costuma cobrir o exame e cada um custa, em média, 1,5 mil reais, imagina o peso desse valor para a paciente que não tem plano”, reflete.

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