20 anos sem Rachel de Queiroz

Arte da capa por Rayssa Sanches

 

Por  Júlia Cruz

 

No dia 4 de novembro de 2003, morria Rachel de Queiroz, escritora pioneira e primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras. 20 anos após sua morte, a obra racheliana continua celebrada e reconhecida no país. O que torna Rachel uma autora ainda tão respeitada e lida no Brasil?

 

Posse de Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras, em 1977. Foto: Arquivo Nacional

 

Nascida em 1910, na cidade de Fortaleza, Ceará, Rachel se inseriu no cenário literário do estado ainda na adolescência. Seu nome a ajudou nesta introdução, pelo lado paterno, sua família tem forte influencia no Ceará e, pelo lado materno, Rachel é descendente de José de Alencar, autor que morreu 33 anos antes do nascimento da escritora. “Não só ela [Rachel], mas muitas pessoas são descendentes dos Alencar. Ela vai participar dos primeiros jornais da capital em grande parte por causa de seu nome. A filiação é um argumento muito cearense e tem como ideia o pertencimento a uma família”, explica Natália Guerellus, doutora em história contemporânea e diretora do Departamento de Estudos Lusófonos da Universidade Jean Moulin Lyon 3, na França.

O sucesso literário de Rachel de Queiroz veio logo em seu primeiro livro, “O Quinze”, de 1930, que retrata a seca de 1915 que assolou o nordeste brasileiro. Rachel escreveu com conhecimento de causa, em 1917, ainda criança, ela e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro para fugir deste desastre natural. Com o lançamento de O Quinze, aos 20 anos, Rachel de Queiroz se projetava na vida literária e se tornava agente social.

De acordo a historiadora Natália, “Rachel fez parte de uma geração intelectual que se pensava como ator social e em como sua obra iria ajudar no progresso do Brasil. Então, não era só ela, mas um movimento que vem desde os modernistas da década de 1920, juntando com os nordestinos de 1930. Tudo o que Rachel vai escrever é uma narrativa realista, que pensa na denúncia da questão social. Ela também vai falar da questão feminina, o que é muito importante porque é a única mulher no romance na década de 1930”.

 

Rachel no açude do sítio do Pici, década de 1930, Fortaleza. Foto: Acervo Rachel de Queiroz – Instituto Moreira Salles

 

Escritora pioneira

“Há grandes escritoras que não foram reconhecidas em suas épocas e escritoras que fizeram muito sucesso no seu tempo, mas depois foram esquecidas. Rachel de Queiroz foi a primeira grande escritora brasileira a ser reconhecida na sua época e lembrada até os dias de hoje”. É assim que Natália Guerellus define a herança racheliana na literatura, especialmente para as escritoras. “Para as mulheres, Rachel deixou um legado da possibilidade de viver de escrita”.

Natália observa que Rachel possui muitas fases diferentes, o que torna difícil de classificá-la dentro da percepção de voz feminina na literatura. “Eu acredito que ela era uma mulher à frente de seu tempo na década de 1930, mas que ficou para trás. Na medida em que o tempo vai avançando e a Rachel vai se inserindo intelectualmente, ela ocupa um espaço em que se torna a norma. Nesse sentido, é difícil ser vanguarda quando você é a situação. É complexo e isso que é legal na trajetória dela”, pensa a historiadora.

Em 1977, Rachel foi escolhida para ocupar a cadeira n° 5 da na Academia Brasileira de Letras (ABL), sendo a primeira mulher a entrar para a instituição. Curiosamente, sua posse ocorreu no dia 4 de novembro, que posteriormente também seria a data de sua morte. Em 2002, em uma entrevista para o jornalista Hermes Nery, Rachel discorreu sobre sua posse na ABL. “A vitória da minha candidatura representou a quebra de um tabu. Neste sentido me senti satisfeita, porque vivi a vida inteira na luta contra os formalismos, as convenções, os tabus e os preconceitos.”

 

Adonias Filho, Austregésilo de Athayde, Rachel de Queiroz e Pedro Calmon na posse da escritora na Academia Brasileira de Letras, 1997, Rio de Janeiro. Foto: Acervo Rachel de Queiroz – Instituto Moreira Salles

 

Em 1993, mais um pioneirismo, sendo a primeira mulher a ganhar Prêmio Camões, maior honraria dada a escritores de língua portuguesa.

Após a morte de Rachel de Queiroz, há 20 anos, sua obra continuou sob os cuidados femininos. Sua irmã, Maria Luiza de Queiroz, foi a responsável por todo o acervo racheliano. Mesmo sendo irmãs, Rachel sempre tratou Maria Luiza como uma filha. O forte laço entre elas surgiu em um momento de dor.

Rachel de Queiroz foi mãe, mas perdeu sua filha para a meningite com menos de dois anos de idade. Três meses depois um novo golpe, morre o irmão de Rachel. No luto, a mãe da escritora entra em depressão e Rachel acaba assumindo uma função materna sobre Maria Luiza, irmã 16 anos mais jovem.

Essa história é contada no livro de memórias “Tantos Anos”, de 1998, escrito por Rachel e Maria Luiza. “Maria Luiza se torna detentora dos direitos da Rachel depois da sua morte. Nos anos 2000, quando Rachel já estava debilitada, com um sério problema de visão, era a Maria Luiza quem datilografava as crônicas dela para o Estado de São Paulo. Ou seja, uma relação muito próxima”, lembra Natália, que conheceu Maria Luiza pessoalmente em 2015 e manteve contato até seu falecimento. “Maria Luiza é uma pessoa adorável, muito responsável e conhecedora da obra da Rachel”, comenta.

 

Rachel e Maria Luiza, década de 1980, Rio de Janeiro. Foto: Acervo Rachel de Queiroz – Instituto Moreira Salles

 

O impacto da obra racheliana

A extensa obra de Rachel de Queiroz deixou um legado de muita autenticidade, segundo Natália. Além das denúncias em seus livros, Rachel tem cerca de três mil crônicas publicadas que se preocupam com o social, o cultural, a vida cotidiana, com a política e com a cidade do Rio de Janeiro. “Quando Rachel escreve sobre o Rio, ela fala de questões da cidade, o tráfego, o saneamento básico, a favela, as pobrezas. Ela contribui para o jornalismo assim, com crônicas que relatam o cotidiano. É quase como se fosse um diário, não tem fim necessariamente, é um retrato do cotidiano”, esclarece a historiadora.

Em 1945, e pelos seguintes 30 anos ininterruptos, Rachel publicaria semanalmente uma crônica na coluna “Última Página”, da revista “O Cruzeiro”. “Para mim, Rachel de Queiroz é uma das criadoras do gênero cronístico do século XX”, avalia Natália Guerellus.

 

Rachel em seu apartamento do Leblon, 1991, Rio de Janeiro. Foto de Sérgio Zelis. Acervo Rachel de Queiroz – Instituto Moreira Salles

 

Rachel ajudou a inserir o nordeste na literatura brasileira ao falar sobre regionalismo e a seca no sertão cearense. “Como ela morou a maior parte do tempo no Rio de Janeiro, onde estão as principais editoras, os principais jornais e a maior circulação de revistas, Rachel se tornou muito responsável pela difusão do imaginário do sertão cearense. Não à toa isso se tornou a memória literária de Rachel de Queiroz”, declara Natália.

Escritora versátil, além dos romances e crônicas, Rachel também têm peças teatrais e livros infantojuvenis publicados. Para Natália Guerellus, a morte de Rachel de Queiroz deixou uma lacuna na literatura brasileira. “Falta alguém com coragem para ser tão explícito politicamente no jornalismo. Falta uma figura completa que escreve de tudo e que conhece do mercado editorial, já que Rachel foi tradutora por muitos anos”, aponta.

O trabalho como tradutora revela outra faceta da versatilidade de Rachel de Queiroz. A escritora traduziu cerca de 40 volumes para o português. Mas são os romances que tornam a obra racheliana tão reconhecida até os dias atuais. Além de “O Quinze”, títulos como “João Miguel”, “Caminho de pedras”, “As três Marias”, “Dora, Doralina” e “Memorial de Maria Moura” são responsáveis por manter viva a memória de Rachel de Queiroz como uma das escritoras mais importantes do Brasil, fazendo com que, mesmo 20 anos após a morte, sua perda seja tão sentida na literatura nacional.

Romances escritos por Rachel de Queiroz

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