O aguardo em uma sala de espera pode ser tedioso. As revistas são sempre as mesmas e a conversa nunca é a opção mais interessante. Mas foi em uma sala dessas que surgiu a boneca Abayomi. De um retalho com seis nós, sem corte nem costura, nasce uma bonequinha das mãos de Lena Martins. A princípio pode parecer simples, mas a criação resultante de alguns minutos de espera é, na verdade, um reflexo de anos de história da artesã, que define a criação da Abayomi como um processo. Entre o instante presente e a bagagem de um passado, a arte de fazer Abayomi resiste ao tempo com suas variadas possibilidades.
Lena é maranhense e veio ainda criança para o Rio, cidade onde trilhou seu caminho como artesã. Ela trabalhou em escolas públicas ensinando práticas artísticas e culturais às crianças. Nessa época, a sua oficina de boneco de palha de milho fazia tanto sucesso que ela começou a ser convidada a ensinar em outras instituições. “A galera conseguia ficar alguns minutos fazendo alguma coisa que dizia respeito a eles mesmos”, contou Lena, ao lembrar que os alunos se reproduziam nos bonecos. Em uma dessas experiências nasceu a primeira versão da Abayomi, que ao longo da trajetória da artesã foi se transformando e se desenvolvendo como uma ferramenta de autoconhecimento por meio da arte.
Desde a primeira versão, na década de 70, já foram incontáveis oficinas e mais de 27 mil pessoas em contato com a bonequinha. Para criar uma Abayomi é simples. Feita apenas com amarrações de retalhos, a “boneca negra sem cola e sem costura” tem infinitas formas. Por ser moldável, contempla diversas etnias e representa um espaço plural de reconhecimento.
O encanto por bonecas não é de hoje. Feitas de barro, pano, madeira, cerâmica, plástico etc, elas estão presentes na sociedade desde os primórdios da civilização. É uma forma de reproduzir algo à nossa semelhança e corresponde à necessidade humana de se reconhecer. As brincadeiras de bonecas, apesar de seu princípio ingênuo e natural, também servem para desenvolvermos nossa sociabilidade. Em seu estudo sobre empoderamento, a socióloga Joice Berth apresenta a importância desse reconhecimento. “Uma boa relação com nossa autoimagem é uma ferramenta importante de reconhecimento de valores ancestrais ou de reafirmação de necessidade de aprofundar na busca pelo autoconhecimento da nossa história”, explica. Joice estuda questões raciais, ocupação de espaços e levanta a necessidade de representação na formação da subjetividade. “Você precisa se enxergar no outro”, ela afirma.
A Abayomi tem muito da história da Lena, que é artesã desde dos 17 anos e sempre esteve em contato com retalhos de tecido, já que sua mãe é costureira. “As primeiras bonecas que eu fazia tinham a ver com a boneca que minha mãe fazia”, contou. O trabalho manual foi uma forma que a artesã encontrou de se expressar. Ela acredita que o trabalho com as mãos pode fazer bem para o corpo e a mente. E não foi diferente para seus alunos. Ariana Felipe participou da sua primeira oficina em 1998 e, apesar da dificuldade inicial, com insistência, chegou ao resultado desejado. “A melhor parte do artesanato é que você esquece tudo ao seu redor. Só pensa na peça que está sendo produzida, nos detalhes da peça, para que saia tudo da forma como idealizou. Cada peça é única, diferente de um trabalho feito em linha de produção,” destacou.
Essa mística da Abayomi também está entre as múltiplas narrativas em seu entorno. É comum ouvir a história que essas bonequinhas eram feitas pelas mães do navio negreiro com pedaços de suas roupas, para acalmar os filhos durante a viagem. Não existem registros históricos que comprovem essa versão e, apesar de ter se tornado popular, pesquisadores discutem a impossibilidade da narrativa diante da realidade drástica daquele momento. Lena enfrenta os desafios de provar a origem de um produto artesanal e explicou que essa é uma situação comum no meio artístico. “A autoria é sempre negada”, lamenta.
“A boneca causa um impacto que às vezes fica difícil você pensar nela aqui e agora.”, sugere a artesã. São as inúmeras possibilidades de reconhecimento que fazem da Abayomi tão forte e impactante. “Não é muito mais empoderador pensar ela na atualidade?”, argumenta Lena. O trabalho com retalhos também foi fonte de inspiração para Cristiani Ferraz. Ela é terapeuta ocupacional e vê a arte como forma de cura, “arte-sana”. “Hoje, vejo que a arte está presente em todas as minhas ações, desde pentear o cabelo, fazer uma comida ou tratar um paciente”, contou.
Em sua estante, Lena tem vários estilos de Abayomi, de sereia até astronauta. As bonecas são uma proposta de ocupação de espaço e pertencimento. “Foi através da Abayomi, pela Lena, que me reconheci e me aceitei como mulher negra na sociedade, me apropriando do espaço que é nosso e que por muito tempo nos foi negado”, contou Ariana. A socióloga Joice explica que empoderamento é a aliança entre conscientização crítica e transformação prática. A produção da boneca tem a ver com trabalho manual, mental e com atenção no momento. “Eu faço questão de falar para as pessoas que não é mágica, é processo”, destaca Lena. Dedicar esse tempo de foco é um caminho para conhecer melhor a nós mesmos. Assim como pontua a autora, algo que revoluciona a essência, como a Abayomi.