Do Nordeste para o mundo

O Cordel é um dos mais tradicionais gêneros literários. Há quem diga que as primeiras aparições se deram na época dos povos antigos, como os greco-romanos, fenícios e saxões. Contudo, somente por volta do século XVI o estilo surgiu na Península Ibérica, com maior influência em Portugal e na Espanha. Em outros tempos, era chamado pelos espanhóis de pliegos sueltos, já pelos portugueses de folhas soltas ou volantes. O objetivo era contar histórias populares através de pequenas rimas, e os encarregados por isso eram os trovadores.

A chegada ao Brasil aconteceu durante o período colonial, em meados do século XVIII. A porta de entrada foi na Bahia, especificamente Salvador, mas não demorou muito para que conquistasse todo o território nordestino. Aqui, foi batizado como Literatura de Cordel devido à tradição do povo português de pendurar seus versos em barbantes e cordas, também conhecidas como cordéis, daí o nome.

Entretanto, mesmo com tanto tempo de existência, somente neste ano o Cordel foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural imaterial do país. O título foi recebido após um pedido pessoalmente feito pelo cordelista Gonçalo Ferreira da Silva, de 81 anos, que enviou os seguintes versos ao instituto. “Nós membros da academia/ Da cultura guardiã /Solicitamos ao Iphan/ Que veja com simpatia /Nossa eterna poesia /Como histórico documento/ E neste requerimento/ De conteúdo fiel/ Pedimos para o Cordel/Seu registro de tombamento”.

Em 1988, Gonçalo fundou a Academia responsável por manter a tradição cordelista

A academia citada por Gonçalo é a ABLC, Academia Brasileira de Literatura de Cordel, da qual é fundador e presidente. A instituição, que acaba de completar 30 anos de existência, surgiu da necessidade de um órgão que apoiasse os artistas do gênero. “Ela nasceu em um momento difícil para os admiradores dessa literatura. A morte de João Martins de Athayde, um dos maiores editores do país, deixou um vácuo doloroso por bastante tempo. Alguns estudiosos chegaram a considerar o Cordel morto”, conta.

Mas engana-se quem pensa que Cordel é coisa passada. Além de fomentar a leitura e a preservação, a ABLC busca a constante renovação do gênero por meio de novos autores e assuntos. Ocupante de uma das 40 cadeiras do órgão, Ivamberto de Oliveira, de 68 anos, ilustra essa situação. “Falo muito sobre temas que merecem reflexão, como racismo e deficiências físicas. Tento escrever outras coisas, mas esse acaba sendo meu ponto mais forte”, esclarece.

O acadêmico Ivamberto garante que não irá parar de escrever por amor ao cordel

Rimados, os cordéis obedecem uma rigorosa regra métrica. Dentre os estilos estão a quadra – uma estrofe de quatro versos; sextilha – com seis versos; septilha – com sete, é a mais rara; oitava – com oito; quadrão – rima os três primeiros versos entre si, o quarto com o oitavo e o quinto com o sexto e o sétimo; décima, com dez; e diversos outros. “A sextilha é mais comum de se encontrar. Cada um tem regras e formas diferentes de leitura, mas todos têm técnica. O poeta geralmente não escolhe um estilo, mas sim um momento para cada um deles”, explica José Salvador, cordelista cearense de 63 anos.

Sediada no bairro de Santa Teresa, na Zona Central da cidade, a ABLC mantém cordeltecas em todo o território nacional e, devido a seu importante papel, também foi reconhecida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) com a Medalha Tiradentes, honraria dada a pessoas e instituições prestadoras de serviços relevantes para as causas públicas do estado. “Independente de qualquer reconhecimento, o cordel, por si só, já seria um patrimônio para a humanidade por sua tradição. Mas, ainda assim, esses títulos nos trazem um peso extremamente importante. Tornamos-nos uma academia de amplitude nacional”, comemora Gonçalo.

Como forma de incentivo, muitos cordelistas oferecem palestras e oficinas escolares para a população mais jovem. Mas, apesar da crescente busca por esse tipo textual nos anos 2000, ainda é um desafio para os autores sobreviverem de suas criações, provável reflexo de um cenário cultural pouco valorizado. “Nasci no interior da Paraíba. Quando era criança, meu pai trabalhava em uma feira e, em sua barraca, sempre se apresentava um cantador de cordel. Isso fez com que eu sempre fosse ligado à cultura popular nordestina. Mas infelizmente os cordelistas não costumam viver de suas criações.”, Ivamberto complementa.

Isael escreve há 17 anos e comercializa seus livretos na Feira de São Cristóvão

Também acadêmico, Isael de Oliveira, de 56 anos, é cordelista há 17 e descobriu seu interesse literário ainda criança. “Sempre escrevi, mas meu primeiro cordel foi inspirado no ataque às torres gêmeas. De início, fiquei decepcionado pela falta de técnica, foi quando entrei na academia e me especializei”, lembra. A respeito dos temas que aborda, Isael é eclético. “Escrevo qualquer coisa. Atualidades, política, lendas, contos infantis e também recebo encomendas de apaixonados que querem se declarar em forma de versinhos”, destaca o autor, que vende suas obras em uma barraca na Feira de São Cristóvão.

Uma das características mais marcantes dos cordéis são as xilogravuras, que se fazem presentes em grande parte dos livretos. Essa técnica de gravura é originária da China e consiste em talhar desenhos na madeira. Por muito tempo, esses desenhos não eram tratados como arte pela maioria das pessoas, já os cordelistas pensavam diferente e viram neles a oportunidade de estampar suas criações por um baixo custo. O resultado, transferido para as capas dos cordéis por meio da impressão tipográfica, retrata elementos do sertão nordestino como cactos, cangaceiros, gado e muitos outros.

Xilógrafo há 35 anos, Erivaldo Ferreira é um dos mais conhecidos profissionais da área no Rio de Janeiro. “Comecei ilustrando as obras do meu pai, que também era cordelista. Com o tempo, conheci outros poetas e, consequentemente, recebi encomendas. Hoje vivo disso”, relata. Erivaldo também opina sobre o título concedido pelo Iphan: “Traz à tona a história do Cordel, para que os mais jovens entendam a origem do país e saibam que temos uma literatura genuinamente brasileira”.

O xilógrafo Erivaldo é responsável por criar desenhos que estampam capas de cordéis

A difusão dessa literatura foi um fator primordial para seu reconhecimento. Gonçalo salienta que pesquisadores estrangeiros também se interessam pelo assunto, geralmente citado em teses de doutorado. “Por um tempo, a abordagem científica tinha uma lacuna. Hoje em dia, recebemos muitas visitas de estudantes e pesquisadores de diversos lugares. Fiz um trabalho internacional, levando o cordel a outras partes do mundo e, assim, eu trouxe o mundo à academia”.

Com todos os seus desafios, a tradição do Cordel é, de fato, a paixão de seus autores. Ivamberto garante que parar de escrever está fora de cogitação. “Essa tradição se mantém pelo valor que nossa cultura possui. Não sinto vontade de parar. Tudo que tem raíz é fortalecido e, por amor, o Cordel se mantém vivo”.

Com reconhecimento do Iphan, literatura se renova e novos livretos abordam assuntos de relevância social