Uma simples folha branca com algumas sequências de pontos em alto relevo pode não fazer sentido para muitos, mas, para cerca de 10% dos cegos que vivem no Brasil, é a principal maneira de se comunicar por meio da escrita e da leitura. Estima-se que 6,5 milhões de brasileiros possuam deficiência visual, dos quais 500 mil sejam totalmente cegos, enquanto os outros seis milhões possuam baixa visão. O sistema responsável por essa comunicação é o braile, que foi criado na França por Louis Braille em 1825 e é celebrado no dia 4 de janeiro.
Ao longo da história, pessoas com deficiência foram consideradas fracas e incapazes e, na maioria das vezes, eram deixadas à margem da sociedade. Até que no século XVI, com o Renascimento, alguns pensadores começaram a entender que essa parte da população precisava ser notada e que alguma coisa deveria ser feita para transformar suas vidas. Em 1784, a realidade dos cegos começou a mudar com a criação do Real Instituto dos Meninos Cegos em Paris. Valentin Haüy, fundador da escola, desenvolveu um sistema de leitura muito simples, a fim de alfabetizá-los.
“A técnica inventada por ele era bastante precária e consistia na reprodução do sistema comum em alto relevo, por meio de tábuas, pregos e arames”, conta a professora Maria da Glória de Souza, do Instituto Benjamin Constant. O primeiro cego a ser alfabetizado foi um mendigo e, para a professora Glorinha, como é conhecida, esse fato é emblemático. “Não sei se ele quis testar sua invenção em alguém que era símbolo da incapacidade e desvalia para mostrar que qualquer um poderia aprender ou porque, caso desse errado, não ia ter tanto problema”, questiona.
Tempos depois, em 1809, nascia Louis Braille, o grande personagem dessa história. Ele ficou cego aos 3 anos, quando sofreu um acidente na oficina de seu pai. O menino frequentou escola regular durante sua infância e com 10 anos foi transferido para o Instituto de Paris. Lá, conheceu um sistema de leitura formado por pontos, que seria o precursor do braile. “Um general do exército francês o desenvolveu para que seus soldados pudessem ler à noite, mas ele era muito grande e complexo. Era formado por 12 pontos e exclusivo para a fonética francesa”, explica a professora.
Percebendo a dificuldade em aprender esse sistema, Braille aperfeiçoou o invento, construindo a cela braile, um retângulo com seis pontos em alto relevo (três à direita e três à esquerda) para formação dos símbolos e criou, também, um instrumento para a escrita. A primeira versão foi lançada em 1825 e a segunda, em 1837, mas, infelizmente, ele não conseguiu ver o sucesso de sua inovação – o reconhecimento só veio dois anos após sua morte precoce, aos 43 anos.
Professora Glorinha demonstra muita gratidão pelo inventor. Para ela, que também possui deficiência visual, Braille era um exemplo de inclusão e altruísmo. “Ele não fez o sistema para si mesmo e sim para toda uma classe que era invisível, e muitos de nós ainda somos. Ele nos tirou do obscurantismo, nos deu visibilidade, capacidade de cultura, lazer, cidadania e independência”, destaca.
Trazendo luz aos brasileiros
Em 1850, o braile chega ao Brasil através de José Álvares de Azevedo. Cego de nascença e filho de família nobre, aos 10 anos foi para Paris estudar no Real Instituto dos Meninos Cegos, onde conheceu a técnica. O jovem voltou para o país determinado a difundir o conhecimento e, então, começou a alfabetizar pessoas com deficiência visual de maneira independente. “Assim como Louis Braille, Álvares de Azevedo tinha um enorme sentimento de coletivo: ajudar outras pessoas. São dois nomes dentro da história da deficiência visual que se cruzam e demonstram um único foco”, observa Maria da Glória.
Uma das primeiras alunas de José foi Adélia Sigaud, filha do médico de Dom Pedro II. “O Dr. Francisco Xavier Sigaud marcou uma reunião entre o jovem professor e o imperador, que ficou maravilhado com a demonstração de leitura”, conta a professora. Dessa maneira, foi dada a ordem para construir o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, localizado, inicialmente, na Gamboa, região central do Rio. Um diferencial foi o fato de, desde a abertura, aceitarem meninas na escola. Das dez vagas oferecidas, quatro foram destinadas a elas.
A instituição, inaugurada em 17 de setembro de 1854, foi a quarta escola para cegos no mundo. Para atender uma demanda cada vez mais crescente, se mudou para um prédio na Urca, onde está situado até hoje com o nome Instituto Benjamin Constant (IBC). Recebe crianças, adolescentes e adultos e suas atividades não se restringem ao ensino do braile: vão desde o incentivo ao esporte até consultas e cirurgias oftalmológicas. No entanto, o viés educacional é o grande carro-chefe.
A professora Rachel Menezes de Moraes, de 32 anos, possui com o IBC uma relação de uma vida inteira. Cega ainda recém-nascida, começou a frequentar o instituto aos 3 anos, no jardim de infância. “Nós fazíamos trabalhos lúdicos para estimular sentidos, principalmente o tato, para nos prepararmos para o braile”, lembra. Ao término do ensino fundamental, precisou enfrentar o Ensino Médio em um colégio regular. “No Pedro II tive professores muito dispostos a ajudar. Davam aulas extras e passavam conteúdos de formas mais visuais”, conta Rachel.
Em 2012, após o doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense, voltou ao Benjamin Constant, com a gratidão de retribuir tudo o que recebeu ali. Hoje, como professora, se dedica a ensinar o braile para adultos com deficiência visual, através do “Reabilitando” – uma das frentes do instituto que auxilia cegos a se adaptarem à nova realidade. Sua fala mansa e tímida revela a paixão que tem pela educação. “Cada um tem suas questões, mas ter força de vontade é o principal para aprender”, ressalta. “Minha maior satisfação é ver um aluno dedicado, que se esforça e consegue alcançar seus objetivos”, completa.
É o caso de Sheila da Costa Mourão, de 68 anos. Quem a conhece agora nem imagina que ela já teve depressão.
Animada, a ex-motorista de ônibus ficou cega aos 50 por conta de um AVC. “Fiquei cinco anos na escuridão: tinha medo de sair sozinha, não lia e nem fazia nada. Foi horrível”, relata. Até que, por acaso, conheceu o IBC e foi encaminhada para o Reabilitando. “O braile foi o que eu quis aprender primeiro. Para mim, foi a melhor coisa. Todo lugar que vou, pergunto se tem material em braile.”
No instituto, a ex-motorista se tornou cantora. A rouquidão da voz esconde o suave agudo que consegue atingir como soprano. Tudo começou há cinco anos, quando aprendeu técnicas de canto. “Um dia, andando pelo Benjamin Constant, ouvi o coral e fiquei encantada. Passei a fazer parte do grupo”. Atualmente, ela integra o Sydney Marzullo, coral formado por cegos. “Cantar é a minha nova profissão. Entrei nesse conjunto, que é remunerado, e meus dias são bem mais alegres. Vamos a muitos lugares e até viajamos. Este ano, vamos representar o Rio de Janeiro em um encontro em São Paulo”, diz.
Contrariando os estereótipos, Sheila é independente. Moradora de Magé, na Baixada Fluminense, vai ao Rio, frequenta teatros, restaurantes e viaja sem contar com a ajuda de ninguém. Mãe de três filhos, confessa que eles ficam preocupados, mas que não deixa de se divertir. “Não me privo de nada pelos outros. Viver não é errado e fazer o que faço me motiva e pode incentivar outras pessoas a serem mais fortes”, orgulha-se.
Com a evolução da tecnologia, foram criados programas com o objetivo de trazer as pessoas para a modernidade. Eles possibilitam a leitura de telas de computadores e celulares e, também, de textos e livros. Alguns dos mais usados é o Daisy (Sistema de Informação Acessível Digital, em português), que inclusive possui reconhecimento por parte do Ministério da Educação; o DosVox, um sistema operacional desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, que utiliza comandos de teclado e voz para realizar as tarefas na informática, e os sistemas de leitura de tela dos celulares, como o Talk Back, no Android, e o Voice Over, que já vêm integrado ao iOS.
Para a professora Maria da Glória, as tecnologias podem contribuir para um fenômeno chamado de “desbrailezação”. “Antes, nós éramos meros ouvintes e o braile nos deu a capacidade de nos comunicar por meio da leitura e escrita. E, agora, parece que querem fazer isso de novo. Não nego a importância da modernização, mas é preciso ter em mente que os recursos devem se somar e não substituir”, opina.
Quem acha que só profissionais podem ajudar pessoas com deficiência visual, está enganado! Conheça algumas dicas para lidar com elas:
• Quando andar com uma pessoa cega, deixe que ela segure em seu braço e
não o contrário;
• Ao almoçar com um cego, ofereça ajuda para cortar os alimentos;
• Se quiser ajudar um cego a atravessar a rua, pergunte-lhe antes se precisa de
auxílio. Em caso positivo, atravesse-o em linha reta;
• Se a pessoa cega precisar de ajuda para se sentar, apoie seu braço no
encosto da cadeira ou sofá;
• Ao perceber pequenos desajustes em sua aparência, como roupas pelo avesso
e zíper aberto, avise discretamente;
• Ao dar orientações de localização, use os termos “direita” e “esquerda” e
nunca “ali” ou “lá”;
• Se você vive com alguém com deficiência visual, deixe as portas totalmente
abertas ou fechadas. Caso troque a mobília de lugar, avise-o;
• Não evite falar as palavras “olhar”, “ver” e “cego” – você pode usá-las
sem receio.
Serviço
Instituto Benjamin Constant
Avenida Pasteur, 350 / 368 – Urca
Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 3478-4442
www.ibc.gov.br