Imagem de capa: ©UNHCR/Victor Moriyama
Entre temperos e quitutes, o apartamento na Tijuca dos venezuelanos Maria Elias Elwarrak e José Joaquim Rodriguez é base para o empreendimento gastronômico da família. Em busca de melhores condições para seus dois filhos, Juan Andrés e Juan Sebastián, eles se mudaram para o Brasil em 2015 e começaram a vender culinária libanesa, uma vez que Maria Elias vem de uma família do Líbano. Hoje, com a condição de refugiados aprovada pelo governo brasileiro, a família conta que quando saiu do país já eram claros os sinais de uma economia em crise, o que fez com que decidissem recomeçar a vida no Rio de Janeiro. Maria ainda afirma que atualmente a situação é mais grave e há pessoas que não conseguem mais comprar um quilo de carne com o salário mínimo, que agora está cotado em aproximadamente 53 mil bolívares, o equivalente a cerca de três dólares.
Em seu país, Maria trabalhava como técnica de informática, enquanto seu marido era engenheiro civil. Com a chegada ao Brasil o casal buscou renda em outro setor, o alimentício, e agora eles vendem pratos por encomenda, além de oferecer o serviço Chef em Casa, em que preparam uma refeição na casa do cliente. A família defende que o respeito à cultura é essencial para a integração: “Nós fomos bem acolhidos, nunca sofremos preconceito de alguém por sermos refugiados. Sempre nos deram auxílio. Quando percebem que somos de fora, as pessoas buscam ajudar”, assegura Maria.
Migração forçada é uma expressão comumente usada para explicar o que significa ser refugiado, mas não abarca a complexidade de se carregar esse nome. Refugiado é todo imigrante que teve que sair de seu país por fundado temor de perseguição relacionado a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Ao chegar em um novo país, fugindo de condições que infringiam seus direitos, são obrigados a buscar uma forma de sobrevivência e recomeçar a vida do zero, enfrentando dificuldades para encontrar emprego, aprender a língua e, por fim, fincar raízes em um novo lar com cenário cultural completamente distinto.
Deslocamento crescente
O fluxo nos últimos anos cresceu tanto que, no final de 2018, superou a marca de 70,8 milhões de pessoas nessa situação no mundo. Esse número é do relatório anual de Tendências Globais da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), uma agência internacional que no Brasil é responsável por transformar políticas e serviços que afetam pessoas deslocadas, o que inclui proteção e auxílio nas fronteiras. Os dados de 2018 demonstram o maior número de deslocamento forçado já registrado pela ACNUR desde a sua criação em 1950 e se aproxima das populações de países como Tailândia e Turquia. No Brasil, não foi diferente: o ano passado foi o maior em registro de pedidos de reconhecimento no país, com mais de 80 mil solicitações. Dessas, 61.681 eram de venezuelanos.
Para os que passam por grandes dificuldades para sair do seu país e finalmente chegar ao Brasil, ainda resta um caminho longo pela frente. A Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro criou o Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio, conhecido como PARES Cáritas, no ano de 1976. Inicialmente receberam argentinos, chilenos e uruguaios, que contaram com a proteção do arcebispo Dom Eugênio Sales para fugir da perseguição política de ditaduras, mesmo ainda estando o próprio Brasil sob ditadura militar na época. Hoje, eles trabalham com a proteção e integração, como explica o assessor de comunicação da Cáritas Diogo Felix: “Quando [a pessoa] chega, o Departamento de Polícia Federal (DPF) costuma direcionar ela para nós e orientamos no preenchimento do formulário de solicitação de refúgio. É o primeiro momento em que vamos analisar o urgente, se ela tem lugar para dormir, se ela precisa comer, o que falta para essa pessoa”, esclarece.
Após o preenchimento desse formulário, o solicitante recebe um protocolo da PF, que é o documento utilizado enquanto seu pedido não for atendido. O reconhecimento pode levar bastante tempo, uma vez que o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) precisa fazer entrevistas e elaborar um parecer para decidir se a pessoa é passível ou não de aceitação. Durante esse processo, a Cáritas auxilia o solicitante de refúgio com o acompanhamento de advogados, assistentes sociais e psicólogos, além do acesso ao aprendizado do idioma, à formação educacional, ao atendimento de saúde e até na preparação para o mercado de trabalho. A dificuldade para encontrar trabalho é grande, mesmo considerando que a maioria dos refugiados tem elevado grau de instrução, como confirma a assessoria de imprensa da ACNUR: “Segundo a pesquisa Perfil Socioeconômico dos Refugiados no Brasil, eles demonstram elevado capital linguístico e capital escolar acima da média brasileira: 34,4% dos entrevistados concluíram o Ensino Superior, muitos com curso de pós-graduação”. Ainda de acordo com a pesquisa, somente 2,7% não completaram o Ensino Fundamental e apenas 0,6% são analfabetos, sendo que 92% falam português.
O trabalho da Cáritas vai além da inserção no mercado de trabalho e da assistência jurídica. Eles ainda oferecem a Casa de Acolhida, onde refugiados que foram interiorizados (transferidos de fronteiras para cidades internas) podem permanecer até seis meses. A instituição tem cerca de 30 funcionários e 60 voluntários e recebe doações para continuar o trabalho. Diogo conta que nesse trabalho há muitas dificuldades a serem enfrentadas, como por exemplo, o desconhecimento sobre o tema, mas que vale a pena participar dessa história: “A parte boa é você acompanhar de perto o recomeço de uma pessoa, que chegou sem nada e teve que fazer tudo do zero. Você vê todo o processo de recuperação da autonomia e de se reerguer. É muito gratificante”, se orgulha o assessor.
Conhecimento Compartilhado
Apesar do deslocamento forçado muitas vezes significar a única forma de sobrevivência, a opção de deixar toda a história para trás ainda é muito difícil. Nesse momento da chegada, o que eles mais têm para compartilhar são conhecimento e cultura, algo que os ajuda a não abandonar completamente seu passado. Foi a partir desse pensamento que o curso de idiomas Abraço Cultural abriu as portas da sede de São Paulo, em 2015, e do Rio de Janeiro, em 2016. A ideia foi uma das primeiras iniciativas que abriu vagas no mercado de trabalho exclusivamente para refugiados no Brasil, tendo em sua equipe professores de inglês, espanhol, francês e árabe.
O projeto completa quatro anos desde a inauguração e hoje as unidades Tijuca e Copacabana, no Rio de Janeiro, empregam 12 professores, que são de países como a Síria, República Democrática do Congo, Haiti, Venezuela e Marrocos. A coordenadora de comunicação, Roberta de Sousa, diz que o objetivo do curso é facilitar a oferta de trabalho: “Um congolense que chega ao Brasil, por exemplo, fala diversas línguas. Ele fala o lingala, a língua nativa, o francês, a língua do colonizador, provavelmente também inglês e português”, justificando a escolha pelo ensinamento do idioma.
Foi para fugir de conflitos armados que a síria Tulim Hashemi, de 28 anos, buscou refúgio no Brasil em 2015, quando os efeitos da guerra já haviam se agravado. O conflito começou em 2011 e, de acordo com a ACNUR, mais da metade da população foi forçada a fugir, somando um total de 5,6 milhões de sírios refugiados. Tulim veio ao Brasil em busca de uma vida fora de campos de refugiados, realidade que a maioria dos sírios enfrenta quando busca asilo em países europeus. Desde o início da guerra, ela já chegou a morar no Líbano, na Turquia e na Malásia antes de vir ao Brasil: “Para ir à Europa, muitas vezes, são anos de espera em um campo. Você acaba não sendo livre. Eu queria poder ir para um lugar onde pudesse fazer as minhas escolhas” ressalta.
Tulim Hashemi é uma das professoras de inglês do Abraço Cultural. A Síria acumula um terço da população de refugiados ao redor do globo, segundo dados da ACNUR. Apesar de estar inserida nesse contexto, ela reconhece que a vinda ao Brasil não foi fácil, mas que hoje ela cultiva uma convivência de muita troca com os alunos. As aulas vão além do idioma e criam um canal cultural para os dois lados, em uma relação que ultrapassa as paredes da sala de aula: “O Abraço Cultural é a melhor coisa que me aconteceu no Brasil. O espaço é mais do que trabalho. Eu passo horas aqui porque me sinto muito bem. Sinto que é minha casa”, comemora.
Culinária Inclusiva
Além da língua, a culinária é uma das melhores formas de integração ao mercado de trabalho do novo país, uma vez que o conhecimento gastronômico de outras culturas pode ser uma novidade interessante a se explorar. A partir deste pensamento que foi criada a feira Chega Junto, que acontece todo último sábado do mês em Botafogo, há três anos. Os expositores são refugiados que buscam mostrar aos clientes um pouco da comida de seus países. É a partir de iniciativas como essa que alguns dos cozinheiros conseguiram abrir seus próprios negócios no ramo gastronômico.
A venezuelana Isis Parra, de 39 anos, foi expositora da feira e hoje ajuda na organização da iniciativa. Ela conta: “A ideia é que os brasileiros possam conhecer a culinária dos nossos países e a cultura da gente, que é rica, variada e diversa”, confirma. Um dos participantes é o sírio Rami Shubaji, de 29 anos, que está na feira desde o seu início preparando churrasco sírio, o shawarma. A diferença cultural e gastronômica entre os países é grande, mas ele afirma gostar da vida no Brasil: “Enquanto nós somos bem fechados, os brasileiros são abertos. A comida é diferente, mas moro aqui há cinco anos, então já me acostumei. Gosto muito daqui, principalmente do povo, que é educado. Fui bem recebido e gosto muito da culinária brasileira!”, elogia. Apesar da dificuldade e das burocracias que enfrentam, a grande maioria deles descreve a recepção dos brasileiros como calorosa. É isso que destaca a venezuelana Luz Marina, que vende um ponche típico venezuelano na feira: “Eu fui bem tratada quando me receberam, tudo correu bem e se resolveu. Agradeço muito ao Brasil”, afirma.
Assim como Luz, outros quatro milhões de venezuelanos já saíram do país desde 2015, tornando essa uma das maiores crises de deslocamento forçado recente do planeta. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da ACNUR informou que, em relação a 2019, ainda não há estimativas numéricas, mas que o aumento do fluxo é evidente: “Sim, existe um aumento claro nas solicitações de refúgio. Em 2016, o Brasil recebeu 10,3 mil solicitações. Em 2017 foram 33,8 mil. Já em 2018, chegou a 80 mil”. Ainda segundo o relatório da ACNUR, o crescimento das solicitações de 2016 a 2017 no Estado de Roraima foi de 300%, reflexo dos efeitos negativos da situação venezuelana.
Apesar das incertezas que os refugiados têm ao chegar em território brasileiro, uma das seguranças é que o asilo oferecido garante que eles possam permanecer longe do país em que correm perigo. Com a solicitação de refúgio, é possível acessar serviços como o Sistema Único de Saúde (SUS) e programas como o Bolsa Família. Segundo Diogo Felix, da Cáritas, o governo federal não oferece auxílio econômico específico para essas pessoas, mas a legislação brasileira segue um tratado internacional que garante o acolhimento: “O país não pode nem impedir a entrada, nem devolver pessoas. Isso acontece porque elas estão correndo o risco de morrer e é um princípio internacional. Todos os países que assinaram a Convenção da ONU devem respeitar isso”, conclui.