A pegada da moda

O ato de consumir depende de algumas ações conjuntas: julgar a qualidade do produto, ponderar a necessidade dele na vida do consumidor e avaliar o preço de compra. Mas será que os compradores também pensam no preço do seu consumo para o meio ambiente? A movimentação do mercado de roupas e acessórios no Rio de Janeiro parece demonstrar que, sim, há uma preocupação maior dos consumidores em pensar o impacto da produção têxtil na natureza. Em meio a um cenário recente de novos empreendedores, que foi bastante fomentado durante a quarentena, destaca-se um ramo de produção que pode ser chamado de Moda Sustentável. Essa forma de se vestir defende a redução da poluição na produção de roupas, sapatos e acessórios, buscando não deixar uma pegada de poluição no meio ambiente.

Empreendedora de moda sustentável
Nicole Garrett posa com camisa que ela desenha para marca

Uma das produtoras que adotou esse conceito e vem contribuindo para revolucionar a moda no Rio de Janeiro é Nicole Garrett, uma advogada de 26 anos decidida a empreender no mundo sustentável. Há pouco mais de um ano ela criou sua própria marca, a Libertê. Hoje, a loja online vende peças desenhadas pela carioca, que não utiliza fibras sintéticas ou plástico: “Para mim é muito mais do que moda, não nasceu com esse intuito. É uma forma de me expressar, mas a minha preocupação maior sempre foi criar um negócio em que a cadeia toda gere uma transformação positiva”, explica Nicole. Já os sócios Melissa Granado, de 27 anos, e Raphael Almeida, de 29 anos, criaram uma confecção de biquínis, chamada Levh Rio, que utiliza tecidos de nylon regenerado proveniente de redes de pesca e outros tipos de descarte nos oceanos e aterros sanitários.

Muitos desses produtos encontram espaço de venda na internet. Durante a pandemia foi realizada a sexta edição da pesquisa “Perfil do E-Commerce Brasileiro”, um estudo da empresa de pagamentos PayPal em parceria com a plataforma de análise de dados BigData Corp. O resultado do estudo mostrou que a abertura de lojas digitais, também chamadas de e-commerce, teve a maior alta desde 2015, com um crescimento de 40,7% nos últimos 12 meses. O movimento parece ocorrer por uma soma de fatores, tanto pelo desemprego e pela busca de fontes alternativas de renda, como também pelo movimento dos consumidores, que decidiram priorizar compras online. Segundo o levantamento realizado pela NZN Intelligence, entre os mais de 1,7 mil entrevistados, 71% afirmam ter aumentado o volume de compras online. Se por um lado a prioridade pelo online parece ter aumentado a venda dos e-commerces, por outro os consumidores demonstram maior controle e precaução ao comprar. Ainda de acordo com o levantamento, 49% decidiu reavaliar os gastos e as prioridades de consumo definidas pelos brasileiros seriam por produtos de higiene (80%), alimentos e bebidas (72%) e remédios (63%).

Esse último fator foi o que Nicole percebeu em sua loja online. A dona da confecção de roupas sustentáveis diz ter sentido uma queda nas vendas: “Eu já vendia online, então como a moda não é um bem de necessidade das pessoas, senti que a preocupação com a pandemia e com valores foi mais para se alimentar do que com roupa. Tenho visto um pequeno aumento nas últimas semanas, mas caiu muito”, explica. Antes da pandemia, outros locais de venda muito comum para produtores sustentáveis eram as feiras. No Rio de Janeiro, por exemplo, Luciano Vassan e Juliana Antela criaram a Eco Feira Rio, que reúne produtores de moda sustentável, entre outros expositores. Esses são alguns dos exemplos de uma mudança recente no mercado da moda que, sendo uma das indústrias mais poluentes, tem gerado debates importantes sobre a pegada deixada no meio ambiente. Afinal, será que ela é tão nociva assim?

Produção sem agressão

A verdade é que, apesar de serem pouco divulgados, os dados sobre a fabricação de tecidos alarmam os entusiastas da moda. O uso da água na indústria têxtil foi calculado pelo Movimento Ecoera em parceria com o Projeto Vicunha no ano de 2019 e revelou o consumo de mais de 5 mil litros de água para a fabricação de cada calça jeans no Brasil. É a partir de levantamentos como esse que também se pode concluir que, mundialmente, essa indústria é responsável pelo consumo de 93 trilhões de litros de água a cada ano. Além disso, para a produção de cada tecido é necessária a utilização de pesticidas e inseticidas, além do processo de tingimento muitas vezes gerar resíduos descartados nos rios e oceanos.

Foi depois de estudar esses impactos que Nicole Garrett criou sua empresa e decidiu utilizar fibras 100% de algodão, tecido que não libera microplástico no processo de lavagem, diminuindo assim a poluição dos oceanos. Apesar de a produção de algodão também ser danosa ao solo, ele é um tecido de fibras naturais, o que facilita a sua decomposição no meio ambiente após o descarte ou até a sua reciclagem, com a criação de novas peças após um processo em que se desfibra o tecido. Além disso, ela opta pelo algodão BCI (Better Cotton Iniciative, o que em português significa Iniciativa por um Algodão Melhor), uma certificação internacional para produtores que utilizam menos pesticidas e água nas colheitas.

Empreendedora de moda sustentável no Rio de Janeiro
Nicole Garrett ganha Prêmio Visão Consciente da Fecomércio/RJ

Como explica a dona da confecção, tudo que é feito na marca precisa de um trabalho de planejamento, uma vez que Nicole é firme na decisão de não utilizar nada proveniente do plástico, como zíperes, botões ou elástico. Por conta disso, a peça tem um custo de produção um pouco maior, mas a dona se esforça para não subir muito os preços: “As grandes empresas têm um preço muito menor porque fazem em quantidade, costuram em um país e levam em outro para estampar, poluindo tudo lá fora. É uma competição desleal, com empresas envolvidas até em escândalos”, lamenta. Nicole pode ter pouco tempo de experiência na indústria, uma vez que a sua empresa acaba de cumprir um ano, mas ela já foi reconhecida com o Prêmio Visão Consciente da Fecomércio/RJ em 2019. O prêmio ainda levou a empreendedora, que ganhou na categoria de melhor empresa de pequeno porte, para o evento da NRF 2020, a National Retail Federation, no mês de dezembro, em Nova Iorque, Estados Unidos.

 

Consumo consciente

Com foco maior em vestidos e blusas, Nicole elabora peças que se caracterizam como “roupas para corpos reais”, que podem ser usadas por homens ou mulheres: “A proposta da marca é justamente ser uma coisa que dê liberdade. Eu criei com a ideia de não querer nada que me aperte, não querer ficar com a sensação de que me incomoda, de que tem que puxar, apertar. Eu queria que desse a sensação de que caiu no corpo e ficou”. As estampas desenhadas por ela são um grande atrativo da marca e, além disso, utilizam o método de impressão digital, que não gera resíduos, diferentemente da prática mais comum na indústria têxtil: “Geralmente as estampas das grandes marcas são feitas por sublimação, que é uma tela em que se grava a imagem com tinta. Cada vez que você usa, você suja de tinta e tem que lavar. Então tem um gasto de água absurdo”, explica. Apesar de o custo ser mais alto, Nicole ainda afirma que a sua escolha pela estamparia digital garante uma qualidade melhor, de forma que as lavagens não comprometem os desenhos.

Mercado de moda sustentável
Melissa Granado e Raphael Almeida

Assim como ela, a empreendedora Melissa Granado é a responsável por criar os modelos da sua empresa, que administra com o sócio Raphael Almeida. Os dois fundaram juntos a marca em 2018, por compartilharem do sonho de proporcionar um consumo mais consciente: “Entendemos que nosso planeta é um organismo vivo totalmente conectado e que cada ação nossa tem uma consequência no funcionamento correto desse organismo. Por isso, nosso principal pilar é fazer um negócio que impacte o menos possível o meio ambiente. Sabemos que é impossível ser 100% sustentável, por isso evitamos essa palavra. Dizemos sempre que buscamos reduzir ao máximo os impactos ambientais em cada processo nosso”, afirma Raphael.

Melissa cresceu em contato com a moda e conta que, ao ver sua avó costureira trabalhar, gostava de brincar na máquina de costuras e fazer roupas para suas bonecas. O sonho de criança foi se tornar realidade quando ela se formou em moda e pôde trabalhar no ramo até os 26 anos, momento em que decidiu arriscar e criar o negócio próprio. Ela afirma que fundar uma empresa sustentável em uma das indústrias mais poluentes do mundo foi um ato de responsabilidade social e ambiental: “Queremos mostrar que é possível e que, principalmente, devemos mudar esse cenário atual da nossa indústria”, defende. Raphael é engenheiro de formação e nunca havia trabalhado com moda, mas também se vê realizado em ajudar a promover mudanças no consumo: “Trabalhar em algo onde a gente sabe que está fazendo a diferença para as pessoas e para o planeta é algo que nos mantém de pé e fortes para enfrentar todas as dificuldades e problemas do dia a dia”.

Marca de moda sustentável no Rio de Janeiro
A marca utiliza tecido biodegradável em biquínis / Fotografia: Bruna Susseking

 

A marca de moda praia é a primeira do Brasil a fazer biquínis com resíduos recuperados do oceano e, para isso, eles utilizam o tecido da parceira italiana Econyl. A partir do resgate de redes de pesca e outros resíduos do mar e de aterros sanitários do mundo todo, os materiais passam por uma limpeza e processo de recuperação, que cria o tecido a partir do nylon regenerado. Além disso, eles também utilizam tecido biodegradável, feito a partir de fibra com tecnologia agregada. Esse tipo de fibra permite a decomposição, quando em contato com as bactérias de aterros sanitários, em apenas quatro anos, enquanto um tecido comum levaria mais de 100 anos para se decompor. Entretanto, Melissa garante que isso só ocorre após o descarte: “O produto com este tecido possui a mesma durabilidade de um produto com um tipo de tecido sem essa tecnologia. A grande diferença está no processo de decomposição quando descartado de maneira correta em aterros sanitários”, explica.

Economia circular

Marca de moda sustentável utiliza tag de papel semente
Etiquetas feitas em papel semente

A sustentabilidade é um conceito baseado em um tripé: econômico, social e ambiental. No lado ambiental, as empresas têxteis buscam alternativas como os tecidos biodegradáveis ou naturais. Já no lado social, cada uma tem a sua forma de agir. Nicole, por exemplo, busca parcerias com pequenos produtores e, por isso, ela utiliza uma etiqueta feita de papel semente (que pode ser plantada ao invés de descartada) criada por uma estudante de escola técnica, que envia o produto de Caruaru, Pernambuco, para o Rio de Janeiro. Existem grandes empresas que produzem a tag, mas ela preferiu escolher o trabalho de uma produção menor: “Eu acho tão mais legal saber que é uma pessoa construindo o negócio da vida dela. É uma relação em que, mesmo que vocês nunca tenham se visto pessoalmente, você acaba sabendo do impacto real na vida dela”, diz Nicole.

Marca de moda sustentável
Fotografia: Bruna Susseking

Os sócios Melissa e Raphael também têm uma preocupação muito grande com a área social e, por isso, contratam uma produção no bairro do Rio Comprido que incentiva o desenvolvimento da economia local e oferece as condições para as pessoas que confeccionam as peças: “Aproximadamente, 90% da equipe, desde a modelagem até a costura, é composta por mulheres. Temos um cuidado enorme para sempre trabalhar com fornecedores que tenham certificados e que ofereçam condições boas de trabalho para seus funcionários”, conta Raphael. “Minha maior paixão é ver e estar em contato com a área do desenvolvimento do produto. Por isso, sempre que posso, corro para a fábrica para acompanhar todo o desenvolvimento. Acredito que seja a parte que tenha maior importância dentro da empresa, afinal, são elas que estão colocando a mão na massa”, completa Melissa.

Novos mercados

O mercado de moda sustentável em crescimento traz novas formas, também, de fazer o produto chegar à mão dos clientes e ao conhecimento do público. As grandes marcas optam por lojas físicas em shoppings para a venda dos seus produtos, o que tem um custo alto e cria a necessidade de uma estrutura complexa, além de ações de marketing grandes e planejadas. Já as marcas sustentáveis, muitas vezes, optam por uma economia mais colaborativa, que vai desde a utilização de serviço de vendas online e parcerias até a participação em feiras. Melissa e Raphael, por exemplo, optaram pelas entregas de bicicleta na cidade do Rio de Janeiro em parceria com a RioBike. Já Nicole utiliza a entrega a partir de compras online e mantém um diálogo aberto com os consumidores nas redes sociais, informando sobre diversas ações em prol do meio ambiente em seu Instagram, além de apoiar ONGs e projetos sociais, a partir das vendas em campanhas temporárias.

No Rio de Janeiro, para facilitar o contato do público com as marcas, os sócios Luciano Vassan e Juliana Antela, ambos de 40 anos, criaram a Eco Feira Rio. A primeira edição ocorreu em 2019, com o objetivo de reunir diversos expositores que tenham a sustentabilidade como foco, desde o ramo alimentício até a área de artesanato e do mercado de moda sustentável. Nos meses de novembro e dezembro de 2019, foram mais de 30 produtores em edições que aconteceram no espaço para eventos do Castelinho, no bairro do Flamengo, e receberam mais de mil pessoas por dia. O organizador Luciano Vassan explica que, para os novos empreendedores, muitas vezes falta um espaço para exibir seu produto: “Muitos pequenos produtores produzem coisas geniais. Muitas vezes, eles não têm lugar para vender e a gente proporciona esse espaço, mas acho que tem que ser mais do que isso. Foi então que a gente começou a pensar nas atividades para chamar atenção e conscientizar o público consumidor”, afirma.

Em 2020, a feira foi obrigada a adiar os eventos planejados em virtude da pandemia de coronavírus. No momento, os sócios estão se reestruturando para receber o público assim que os eventos possam acontecer presencialmente sem oferecer riscos à saúde dos expositores e dos consumidores. Enquanto isso, as redes sociais da feira continuam ativas para compartilhar produtos e informações importantes sobre o tema. Como forma de conscientização, eles também planejam proporcionar atividades com temas diversos, como já fizeram sobre café orgânico, hortas comunitárias ou reciclagem. Luciano e Antela acreditam que o mercado sustentável tem muita oportunidade de crescimento e desejam ajudar o público a conhecer mais sobre o assunto: “Nos últimos anos, com a questão dos incêndios em vários lugares do mundo, é importante chamar a atenção para esse assunto e pensar em modos de produção menos agressivos. Isso está na mídia e o pessoal está começando a conhecer um pouco mais, mas ainda falta muita informação”, reflete Luciano.

One Reply to “A pegada da moda”

  1. “Geralmente as estampas das grandes marcas são feitas por sublimação, que é uma tela em que se grava a imagem com tinta. Cada vez que você usa, você suja de tinta e tem que lavar. Então tem um gasto de água absurdo”,

    Há um equívoco nessa afirmação, pois a sublimação é um dos métodos de estamparia digital. O que gera resíduos no sentido da afirmação, são os processos de estamparia convencionais.
    O processo de estamparia convencional através de telas ou cilindros exige uma grande quantidade de água além de produtos químicos, que muitas vezes acabam sendo despejados no meio ambiente.Durante anos, os processos convencionais tais como a estamparia rotativa tem exigido a aplicação de uma grande quantidade de produtos químicos nos tecidos e a utilização de uma grande quantidade de água e de energia. O processo baseia-se em diferentes telas para cada cor do desenho final e é necessário para produzir uma quantidade suficiente de impressão com pasta para garantir a qualidade de todo o lote.
    Esta pasta cobre o tecido e acaba criando um resíduo na água limpa que deve ser tratada posteriormente.

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