Nóiz no vestibular

Arte da capa por Leonardo Portugal

Por  Júlia Cruz

“…é nóiz, que corre no caminho do bem, nóiz que disse é nóiz quando não virava um vintém…”. A música do rapper Emicida não só deu o nome para a ONG Nóiz, mas também serve de lema para suas ações e projetos. A ONG atua na região do Brejo, na Cidade de Deus, Rio de Janeiro, e investe na educação e profissionalização dos moradores da área. A partir desses ideais, surgiu, em 2021, o Gradua Nóiz, pré-vestibular social pautado na educação popular. Karen Pereira, coordenadora do projeto, fala que o intuito é dar recursos para que os alunos possam ser encaminhados para um futuro mais próspero.

Noelia Rodrigues, educadora popular, doutora em educação e políticas públicas, e idealizadora do Coletivo de Educação Popular e Libertária, define a educação popular como o ensino que faz sentido na vida de cada pessoa. Dessa forma, é possível haver educação em qualquer espaço, como na rua, em casa ou no trabalho. O importante é que o aluno seja sujeito do processo, não objeto. “Ao ensinar um auxiliar de serviços gerais, por exemplo, é possível pegar exemplos do cotidiano, como a água sanitária, e a partir disso desenvolver questões de diversas disciplinas, como química e física. Assim, o aluno associa as matérias com o dia a dia e compreende melhor este saber”, diz a educadora.

 

Noelia Rodrigues, educadora popular e doutora em educação e políticas públicas.

 

“As coisas agora estão diferentes de dez anos atrás, quando eu estudei. Hoje, aprendemos a história da nossa colonização com a chegada dos portugueses, o que antes era passado para nós como o descobrimento do Brasil. E só essa pequena diferença tem um impacto grande para a história”, conta Gisele da Cruz, uma aluna que se apropriou bem do saber. Ela tem 33 anos, está desempregada, mas faz alguns trabalhos como cabeleireira e designer de sobrancelhas. Gisele conheceu a ONG Nóiz pelos projetos infantis que seus três filhos frequentam. Durante a pandemia, precisou ajudar as crianças de onze, nove e três anos com as atividades escolares, o que despertou seu interesse pela volta aos estudos. A inauguração do Gradua Nóiz significou, então, a oportunidade perfeita para tentar o vestibular. 

“A única forma de transformar sua vida é por meio da educação. E todo dia a gente aprende isso no Gradua Nóiz”, afirma Gisele.

 

Aula de História do Brasil em campo.

 

Mas a missão de montar um pré-vestibular durante a pandemia de Covid-19 não foi tarefa fácil, admite Karen. A ideia original era começar as aulas em 2020, mas a incerteza da crise adiou os planos. Em 2021, a coordenadora percebeu que não poderia mais esperar e as aulas foram iniciadas:

“Eu não queria que começasse desse jeito, pois estamos falando de um espaço que tem poucas oportunidades. Mas os alunos passaram a perguntar e isso me convenceu a abrir as portas”.

 

Karen Pereira, coordenadora do Gradua Nóiz.

 

O andamento das aulas não foi usual. Para Karen, era inviável usar a estratégia de aulas totalmente on-line, pois, devido às limitações do acesso à internet na favela, o pré-vestibular não estaria cumprindo seu intuito de democratizar a educação. A solução encontrada foi colocar os alunos dentro de sala de aula e os professores à distância, com as aulas sendo transmitidas ao vivo por meio da televisão da ONG. A quantidade de alunos selecionados para cursar o pré-vestibular teve que ser reduzida para respeitar o distanciamento social. “Não era o que a gente queria, mas era o que tinha”, relata Karen.

As aulas acontecem aos sábados, de 8h às 18h, mas durante a semana há monitoria totalmente remota em que os professores podem trabalhar exercícios e outras atividades, porém contando com a internet dos alunos. Todas as atividades são gratuitas.

 

Alunos do Gradua Nóiz realizando simulado das matérias.

 

Gisele explica que participa da monitoria todas as noites, mas a internet foi um problema no início:

“Eu não tinha wi-fi em casa, então precisava usar o plano de internet do celular, mas não foi o suficiente. Fiquei duas semanas sem poder assistir à monitoria e voltei um pouco perdida na matéria, mas juntei um dinheiro e coloquei wi-fi em casa”.

Para Larissa Andrade, de 17 anos, também aluna do Gradua Nóiz, além da dificuldade em acompanhar a monitoria por causa da instabilidade do sinal de internet da Cidade de Deus, há dois meses ela começou novo um trabalho como caixa em uma loja, impedindo a sua atividade educacional.

 

Aula de História do Brasil em campo. Da esquerda para a direita: Gisele da Cruz, Conceição, Marina, Karen Pereira, Larissa Andrade e Viviane.

 

Além da dificuldade acesso à internet, muitos dos alunos do Gradua Nóiz ainda lutam contra a fome. Antes do início das aulas, aos sábados, os estudantes recebem café da manhã e, desde outubro, também recebem almoço e uma cesta básica por mês. Karen observa que a doação das cestas básicas fez com que alguns alunos voltassem a frequentar as aulas depois de um período de evasão.

As ações sociais da ONG Nóiz inspiram as alunas na escolha de profissões que também darão um retorno para a Cidade de Deus. Larissa, por exemplo, quer cursar economia. A jovem recorda que não pensava em seguir esse caminho, mas em uma feira de carreiras promovida pelo Gradua Nóiz, conheceu o lado social do curso. “O expositor também me recomendou mais de dez economistas mulheres. Pesquisei, me identifiquei com a história delas e me vi fazendo economia”, comenta a estudante.

 

Feira de Carreiras no Gradua Nóiz.

 

Já Gisele quer fazer pedagogia e depois se especializar em psicopedagogia para apoiar os trabalhos existentes na Cidade de Deus porque, segundo ela, a psicopedagogia irá ajudar as crianças a expressarem os problemas que enfrentam.

A educadora Noelia Rodrigues acredita ser importante que os alunos, uma vez que cheguem na faculdade, não esqueçam de onde saíram, continuando o trabalho social e chamando mais pessoas para ocupar esses espaços das universidades.

O pré-vestibular que inspira alunos a partir dos ideais das letras de Emicida espera formar pessoas que irão contribuir para a sociedade e darão continuidade ao legado de resgate da cidadania por meio do conhecimento, como já dizia em suas letras. Afinal, como canta o rapper na música “Principia”, “tudo que nós tem é nós”.

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