Crianças e tecnologia. Há tempos se fala sobre os malefícios da introdução de aparelhos eletrônicos e internet na infância e os problemas tardios em torno disso. Os mais novos aprendem a lidar e criam autonomia sobre esse mundo cada vez mais cedo e isso desperta o alerta de psicólogos, que se preocupam com o excesso de telas na rotina das crianças. Muitos pais vivem o dilema: restringir o uso desses aparelhos priorizando as relações interpessoais ou incentivar os pequenos oferecendo um direcionamento já que as futuras profissões exigirão habilidades tecnológicas e, portanto, a afinidade com o mundo digital desde já pode ser útil.
O mercado da tecnologia da informação teve um aumento notável durante a pandemia. Somado a isso, estão surgindo cada vez mais escolas voltadas a ensinar design gráfico, criação de jogos virtuais, edição de vídeos, programação e robótica. Um exemplo é a Zion. Rogério Felix, diretor acadêmico da escola de entretenimento e idealizador do programa Zion Geek – para crianças a partir dos seis anos, fala sobre a criação de uma metodologia de aprendizagem específica para os pequenos. “Começamos a observar uma demanda muito grande de irmãos de alunos querendo estudar aqui. A partir dos seis anos os pais nos procuram para saber se os filhos poderiam se matricular.”
O diretor também explica que a didática utilizada para as crianças é diferente da aplicada aos adultos. “Elas aprendem brincando, em uma metodologia ‘gamificada’ na qual elas conquistam as coisas e vão aprendendo a aplicar dentro da programação”.
Além da metodologia diferenciada, que torna a aprendizagem um momento de lazer, o m processo construtivo e controlado com tecnologias pode trazer benefícios à vida acadêmica das crianças, afirmam os professores referindo-se ao estímulo do raciocínio lógico.
Outro modelo de escola de tecnologia para crianças disponível no mercado é a plataforma digital com professores particulares em aulas on-line. Um exemplo é a BYJU´S Future School, considerada a maior escola de programação do mundo e a maior startup da Índia. A escola de ensino à distância já conta com mais de cem milhões de alunos de diversas nacionalidades e tem investido em publicidade no Brasil. A professora de programação da BYJU´s, com formação em pedagogia e pós graduação em neuropsicopedagogia, Camila Tavares, afirma que o contato produtivo com as tecnologias pode melhorar o desempenho no colégio.
A neuropsicopedagoga ainda explica que nessa idade as crianças são chamadas de aprendizes “esponjas”, pois o cérebro consegue absorver bastante informação, o que torna a idade ideal para aprender conteúdos novos.
Ainda há no mercado a oferta de um terceiro modelo de ensino de tecnologia às crianças. A Moleque de Ideias, em Niterói, RJ é uma corporação que trabalha com engenharia de software e aposta em um ambiente de aprendizagem livre que, diferente de uma escola, não possui aulas nem turmas. A proposta é dar espaço e autonomia às crianças, a partir dos quatro anos, para praticarem o que quiserem.
Leila Miranda, de 64 anos, formada em Engenharia de Produção e em Análise de Sistemas, com especialização em Educação Profissional e uso de Tecnologias Digitais na Educação, é uma das idealizadoras e fundadoras da Moleque de Ideias. Ela explica sobre o aprendizado livre das crianças: “Estimulamos a autonomia, a amizade e o bem-estar de cada uma delas.”
Ademais, ainda segundo Leila, o ensino de atividades como programação e computação desde a infância pode ajudar no desenvolvimento de habilidades comportamentais (soft skills), como criatividade, pensamento crítico e resolução de problemas.
Algumas das oficinas oferecidas são de programação de jogos, fotografia, vídeos, robótica e tecnologia digital – além de atividades fora de tela, como horta, confeitaria e modelagem. Leila ressalta que os pais conseguem acompanhar o processo de criação e aprendizagem dos filhos. “Todas as atividades das crianças são apresentadas aos familiares sob a forma de relatórios escritos e com fotos, semanalmente e os pais adoram”, explica a educadora.
Os profissionais de Tecnologia da Informação recomendam um lugar seguro para o desenvolvimento de habilidades e aconselham os pais a não verem os computadores como os vilões da infância. Paula Salgado é mãe do pequeno Manuel, de oito anos, e permite que ele se divirta e aprenda realizando as atividades preferidas. “Quero ver meu filho feliz e aprendendo o que ele gosta, ajudando na sua formação como ser humano. Quero que ele saiba trabalhar em equipe, aguardar a sua vez e ouvir o outro.”
Nesta época pós-pandêmica, uma preocupação de muitos pais é com a ressocialização dos filhos. Paula relata que Manuel é muito extrovertido e conseguiu uma amiga especial nessa experiência tecnológica para desenvolver ideias. Ainda assim, a mãe não descarta as atividades físicas na rotina dele. Segundo ela, o filho está sempre se movimentando nas aulas de capoeira e futebol.
Conhecendo as crianças
A geração Alpha – também conhecida popularmente como “geração tablet na mesa” – agrupa as crianças nascidas a partir de 2010 e tem como principal característica a familiaridade com eletrônicos. A maior parte dessa geração chegou a ter contato com o mundo digital antes mesmo de completar o primeiro ano de vida.
A psicóloga e pós-graduada em Psicologia Social, Ana Clara Pequeno, reforça que isso acontece porque o mundo também mudou e, muitas vezes, os pais acabam apelando para distrações mais fáceis, principalmente em momentos turbulentos. “Sem o apoio das escolas e demais suportes de cuidado durante a pandemia da Covid-19, os eletrônicos se tornaram um grande aliado dos cuidadores, que precisaram se adaptar à vida de home office e também lidar com o estresse e ansiedades”, explica a profissional.
Ana ainda faz um apelo aos pais para que controlem o tempo de tela dos filhos, principalmente nos primeiros anos de vida.
A neuropsicóloga Manuela de Paula, com pós-graduação em neuropsicologia e em terapia cognitivo-comportamental, reitera que o estímulo da comunicação de forma pessoal é fundamental para o desenvolvimento social da criança. “Já tive casos de pacientes que foram encaminhados para mim porque a criança estava com baixo contato ocular. A família suspeitava de autismo, porque a criança não se comunicava, não estabelecia e nem mantinha contato visual prolongado.” Durante a avaliação, a psicóloga percebeu que a criança não interagia nem com a mãe, preferia falar com ela por WhatsApp. “Então, se ela não precisa usar o contato pessoal, ela não aprende e realmente tem dificuldade depois”, conclui.
Todavia, Manuela não descarta a possibilidade da tecnologia ajudar a desenvolver técnicas e contribuir com o aprendizado das crianças. “Já participei de pesquisas e projetos que mostravam como a tecnologia auxilia no processo de alfabetização, por exemplo. Quando bem utilizada, bem empregada, ela só agrega. Hoje eu acredito que ela, bem utilizada, tem mais benefícios que malefícios.”