Cantinho de avó para as crianças da Cidade de Deus

Algumas ruas depois da entrada principal da Cidade de Deus, uma das comunidades mais violentas na Zona Oeste do Rio, as crianças gritam enquanto jogam futebol em um campo improvisado na praça. Nesse mesmo espaço, os muros da Casa da Dona Amélia pouco revelam o que está por detrás: um espaço destinado ao trabalho social de Ingrid Siss, neta de dona Amélia, iniciado há mais de um ano. Abrindo o portão preto, pode-se ver a sala onde se reúnem em roda as mulheres que fazem parte da rede de apoio às mães e seus filhos, em um espaço de troca de experiências e brincadeiras de criança.

Ingrid Siss já comemora mais de um ano do projeto social que iniciou na casa da sua avó

Com 25 anos, Ingrid Siss é formada em psicologia e gere o projeto que criou no espaço que havia sido casa dos seus avós. Foi no final da faculdade que surgiu a ideia de trabalhar com gestantes e crianças, quando recebeu uma doação de enxovais de bebê. Após o falecimento de dona Amélia, a casa na Cidade de Deus foi deixada para a neta, que decidiu iniciar ali um projeto junto às memórias afetivas de sua infância. Ingrid diz que aprendeu mais com a avó do que na faculdade: “Minha avó foi a pessoa que mais me ensinou psicologia na vida. Foi quem me ensinou a ter afeto, contato, a pensar e a cuidar dos outros. Quando me formei, tive a necessidade de usar o que aprendi para ajudar as pessoas desse lugar que significou tanto para mim”, recorda.

Na casa, a proposta para crianças é simples: brincar. Com um cantinho de leitura, cheio de livros infantis, e um tatame no chão, elas são convidadas a um espaço lúdico e de socialização com os colegas. Para os pequenos, a Casa da Dona Amélia ainda começou uma ação com padrinhos, que podem levá-los a passeios e ajudá-los a escrever o Livro da Vida. Atualmente, sete crianças participam do apadrinhamento, pensado como forma de construir memória e levado a frente por um grupo de voluntários. “A ideia é que eles possam abrir ainda mais suas perspectivas, conhecer outros lugares e colocar no livro o que sonham e pensam para o futuro. É interessante que daqui a alguns anos eles olhem e vejam o que sentiram nessa idade, registrando esse momento”, conta Ingrid.

A voluntária Thaís Nolasco, de 26 anos, organizou o grupo de madrinhas e padrinhos batizado de “Inventando História”. Ela conta que o projeto começou de forma despretensiosa, mas atingiu um patamar de troca de muita importância para as crianças: “Tirá-las do contexto em que vivem e levá-las a outro nos mostra que elas têm uma alegria genuína com coisas simples. Foi gratificante ver as respostas que davam aos capítulos do livro, perceber que são extremamente inteligentes e podem chegar longe. Além disso, o ganho para elas foi a percepção de que têm alguém com quem conversar, e que cada um tem sua individualidade”, completa orgulhosa.

Grávida de cinco meses, Juliana Pires de Barros Alves, de 29 anos, tem cinco filhos e três deles já foram apadrinhados. Ela diz que todos ficam impacientes e ansiosos para o próximo encontro: “Meus filhos sempre querem saber o que vai acontecer, se haverá passeio ou se podem vir aqui. Você não pode falar nada, se não perguntam o tempo todo quando será e se já está perto. Ficam muito eufóricos e alvoroçados porque querem que chegue logo. Eles são fãs”, relata.

Juliana afirma que seus filhos se encantaram pela proposta da Casa da Dona Amélia

Não é incomum as crianças entrarem sem bater, querendo brincar e saber qual é o novo evento que podem participar. No campo de futebol em frente, jogam e torcem animados, usando todas as energias. Aos sons da partida que acontece do lado de fora, as mães e gestantes discutem na sala a importância de ter um espaço seguro para as crianças dentro da Cidade de Deus, onde possam se distrair sem correr perigo. Todas concordam que ter uma casa para interação delas é uma ótima forma de mantê-las entretidas e a salvo.

Ao conversarem, as mulheres expõem desejos e propostas para os futuros trabalhos. Criado há pouco mais de um ano, o projeto tem sido essencial para construir uma rede de apoio entre elas, sejam as que esperam a chegada dos bebês ou as que já são mães. Realizada todas as semanas, a reunião de gestantes constitui um grupo fixo de conversa sobre temas como família, amigos, trabalho, empreendedorismo feminino, aspectos da gravidez e da criação dos filhos. Elas também recebem um book com fotos que marcam o final da gravidez, proporcionado por fotógrafos voluntários, além de enxoval para o bebê e outras doações que chegam.

Iasmim acredita que a rede de apoio que criou foi essencial para sua gravidez

Há outras ações para as mulheres que já foram postas em prática, como dias para cuidar de si, esportes para gestantes e até uma festa de encerramento com desfile de moda. Animada, Iasmim Baptista, de 19 anos, mostra às outras grávidas fotos do dia em que fez a pintura na barriga, quando esperava Jhonatan. Para ela, o grupo foi um apoio necessário: “Eu aprendi muita coisa. Mesmo não desejando ser mãe no momento, aconteceu. Quando eu engravidei, meus planos mudaram. Ele já vai fazer um ano”, conta.

As ideias de Ingrid saem do papel assim que ela consegue ajuda para levar os projetos à frente. Tudo é construído em grupo, de forma que as propostas façam sentido e estejam de acordo com as necessidades das mulheres e crianças que frequentam a casa. “As pessoas tomam conhecimento e se oferecem para fazer parte ou contribuir com alguma coisa. Acho que temos sorte porque até então tem aparecido muita gente para ajudar”, explica a psicóloga.

A barriga ainda é discreta e Ingrid deixa para o final a novidade: ela agora é uma das mulheres grávidas da Casa da Dona Amélia, com três meses de gestação. As mulheres brincam, afirmando que têm culpa na gravidez. Ingrid nem discorda: “Realmente estar nesse ambiente influencia nosso lado materno. Aprendemos muito umas com as outras. Sinto que posso contribuir mais de uma forma diferente, agora não só como psicóloga, mas também com a minha experiência como mãe”, completa

Serviço

Casa da Dona Amélia
Travessa Hazor, 22 – Cidade de Deus
Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 99636-6328