As novas gerações, que só foram apresentadas à obra infantil de Monteiro Lobato, desconhecem a riqueza literária da produção do escritor paulista que antecede o Sítio do Pica-pau Amarelo e seus personagens. Bem antes de Pedrinho, Narizinho e Emília nascerem, entretecidos por Dona Benta e tia Nastácia, e instruídos na proverbial sabedoria do Visconde de Sabugosa, ele chocaria o país ao inaugurar a senda do regionalismo realista na literatura brasileira.
Urupês, que completou cem anos de seu lançamento em 2018, foi a obra de estreia de Lobato e também um cartão de visitas revelador do talento e da coragem que o guindariam não só ao cânone literário, mas ao ateliê dos escultores da identidade nacional. A partir daquele momento a carreira do advogado de Taubaté e, mais tarde, do fazendeiro da Vila de Buquira (hoje a cidade de Monteiro Lobato) tomaria um rumo indissociável dos livros e do empreendedorismo, alimentada pelos sonhos desenvolvimentista e evolutivo do Brasil.
Como escritor, Monteiro Lobato expressou em seus primeiros livros o inconformismo com o atraso civilizatório do país. Ao ocupar a promotoria de Taubaté e, mais tarde, ao assumir o comando da Fazenda Buquira, herdada de seu avô, o Visconde de Tremembé, ele montou postos de observação da vida rural brasileira, transformada em pano de fundo de suas obras iniciais, como Urupês e Cidades Mortas.
Em Urupês o escritor apresentou ao Brasil o Jeca Tatu, um estereótipo do caboclo da época, condenado ao atraso e à ignorância por uma sociedade segregada em castas praticamente incomunicáveis, separadas pelo hiato cultural e econômico, cuja superação ainda não foi plenamente alcançada após uma centena de anos da criação do personagem.
Jeca Tatu era o oposto do índio e do caipira idealizados pelo Romantismo. Descrito pelo escritor quase sempre em sua posição habitual, que para Lobato traduzia um caráter indolente e preguiçoso, ele passava horas acocorado, pitando um cigarro de palha no canto da boca. O que mais alegrava a sua vida enfadada era apreciar as queimadas por ele mesmo produzidas, hábito que levou seu criador a denominá-lo de “fazedor de desertos” no artigo Velha Praga, acrescentado na segunda edição como capítulo adicional aos 13 contos e artigos que compõem o livro.
Urupês – uma espécie de cogumelo que brota na madeira podre – é o título de um desses artigos e traz, pela primeira vez, a descrição desgraciosa do Jeca Tatu: “A verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha em beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! Jeca Tatu é um Piraquara do Paraíba, maravilhoso epitome de carne onde se resumem todas as características da espécie. O fato mais importante da vida do Jeca é votar no governo. (…) O caboclo é soturno. Não canta senão rezas lúgubres. Não dança senão o cateretê aladainhado. O caboclo é o sombrio Urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.”
São indisfarçáveis os indícios de teorias hoje rejeitadas, como a eugenia, presentes igualmente na obra de outro grande escritor social que o antecedeu – Euclides da Cunha. Eram, afinal, homens do seu tempo, mas até hoje esse viés, assim como alegadas manifestações de racismo, envolvem em polêmica a obra de Monteiro Lobato. No entanto, mesmo pertencendo à aristocracia rural, Lobato sonhava com a superação do atraso social brasileiro.
Para o presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, Urupês lança luzes para se repensar o Brasil, buscando um novo caminho na direção do desenvolvimento: “É um livro que reúne as melhores sinergias de Monteiro Lobato. Um novo percurso e uma proposta para alcançar uma ideia de Brasil.”
Um marco do setor editorial brasileiro
Para além de ter sido o seu livro de estreia, em Urupês Monteiro Lobato inauguraria uma importante carreira como editor. À frente da Companhia Editora Nacional, que chegou a ser a maior empresa nacional do setor, ele estabeleceria um marco no mercado editorial brasileiro, que iria se modernizar e popularizar mais o hábito da leitura em uma nação iletrada e fortemente acometida pelo mal da ignorância. “Um país se faz com homens e livros”, era uma de suas máximas, transformada em um dos principais axiomas desenvolvimentistas.
O caráter empreendedor de Lobato está presente em todas as fases da sua vida. Ainda bem jovem, a par dos estudos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e da colaboração para diversos periódicos, ele iria se aventurar em diversas atividades empresariais, desde a criação de uma fábrica de geleias até a participação em negócios do setor ferroviário. Ao assumir o comando da Fazenda Buquira, após a morte do avô, fundou, com os recursos oriundos da herança, um externato em Taubaté e decidiu também explorar comercialmente o Viaduto do Chá.
A região central de São Paulo foi o palco dos seus primeiros anos como editor. Em 1918 ele comprou a Revista do Brasil, engajando-se nas causas nacionalistas, e logo em seguida abriu a Companhia Graphico-Editora Monteiro Lobato, que iria se transformar mais tarde na Companhia Editora Nacional. A empresa ocuparia, em seu apogeu, o primeiro andar no número 34 da Praça da Sé, no recém construído edifício denominado Palacete São Paulo, até hoje um dos mais antigos prédios paulistanos. O prédio seria, mais tarde, transferido para o patrimônio do governo paulista. Curiosamente, é onde hoje funciona a Universidade do Livro, criada pela UNESP para oferecer cursos livres sobre toda a cadeia produtiva e comercial do livro.
Lobato publicou livros que iriam se notabilizar pela qualidade editorial e a excelência das ilustrações. Ele também deu vazão à sua faceta de tradutor, vertendo importantes obras estrangeiras para o português. Ainda como editor, incentivou, em suas publicações, a exploração nacional do petróleo brasileiro, bandeira que empunhou não só no discurso, mas também na prática. Fundou várias companhias petrolíferas e enfrentou poderosos interesses econômicos, que defendiam a exploração do petróleo brasileiro por empresas estrangeiras.