Seja em álbuns de família, exposições fotográficas, veículos de notícias ou nos livros de história, a fotografia se mostra uma das maiores responsáveis pela manutenção da memória. Desde a sua criação, a arte de escrever com a luz tem se feito cada vez mais presente no nosso cotidiano e, recentemente, mais acessível. Hoje, não só historiadores e jornalistas têm a possibilidade de manter a história viva: cada dono de uma câmera ou de um aparelho celular tem nas suas mãos um instrumento de captura de imagens. Unindo a importância da lembrança ao registro da realidade das periferias, diversos fotógrafos têm dado ao público de suas oficinas as ferramentas necessárias para demonstrar, cada um com sua autoria e personalidade, a realidade do lugar em que vive, com registros que ficarão para a história.
Com quadros fotográficos de seus companheiros de profissão ornamentando as paredes de sua casa, Dante Gastaldoni, idealizador do projeto, se mostra satisfeito de orquestrar um grupo que se completa nas aulas oferecidas. Ao todo, já são cerca de vinte fotógrafos participantes das oficinas ministradas em diversas capitais brasileiras, cada um com uma área temática distinta na fotografia. Grande parte desses oficineiros já foram alunos de Dante ou de João Roberto Ripper, respectivamente professor/coordenador e criador da Escola de Fotógrafos Populares (EFP) da Maré, iniciada em 2004. Desde a saída de ambos, em 2013, o grupo continuou unido, buscando ampliar as aulas que eram dadas na Maré para nível nacional.
Quatro anos após seu início, as oficinas já percorreram 14 estados do país e, por meio de apoios de empresas privadas ou órgãos públicos, ministraram aulas gratuitas ou por valor simbólico para mais de 500 alunos, com o foco voltado para as periferias. A primeira oficina foi feita com o apoio do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica (CCPF), da Funarte, que ofereceu ao grupo a proposta de ministrar um workshop ligado a questão da memória nas favelas. Desde então, o núcleo integrou oficinas que receberam apoio de faculdades públicas, da FUNARTE e do SESC. Já foram enquadrados na lista os estados do Acre, Amazonas, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe.
Entre goles de café, Dante conta como foi feliz em participar de iniciativas que levaram a favela para a universidade e vice-versa. O professor é aposentado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e ministra aulas na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, sua maior alegria nessa função mista de professor e mentor é ver que, anos depois do primeiro contato de estudantes com a câmera, muitos tornaram-se fotógrafos que expõe seu trabalho internacionalmente e tem uma produção única e original. Com orgulho, se emociona ao admitir: “Me favelizei”, assume. Dante explica que na Maré e, posteriormente, em outras favelas, sentiu um envolvimento diferente do que já havia presenciado como professor: “As pessoas abraçam a fotografia como uma bóia de salvação, um projeto de vida. Se jogam de cabeça. Eles começam a te cobrar e se doar num padrão que é diferente da universidade”, diz.
O fotógrafo João Roberto Ripper, um dos grandes nomes da fotodocumentação do Brasil, foi responsável pela criação, em 2004, da Escola de Fotógrafos Populares e pela agência Imagens do Povo, ambas na Maré. Hoje, assim como Dante, já não é mais professor do EFP, mas viu nas oficinas mais uma oportunidade de seguir passando adiante seu conhecimento em fotografia social às periferias: “O mais interessante desse projeto em si é que é um segmento novo que nos preenche com uma alegria de fazer muito próxima ao que era na Maré. É uma outra experiência e há novas bandeiras, como a de criar e mostrar um acervo de fotos da periferia”, afirma.
Os fotógrafos que integraram a Escola na Maré formaram um grupo unido e diversificado que já expôs internacionalmente em países como Alemanha, Argentina, Áustria, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, México, Suíça e Uruguai. Um dos participantes é o fotógrafo Luiz Baltar, que cresceu e viveu em periferias, formado em Gravura na Escola de Belas Artes da UFRJ. Aluno da última turma de fotógrafos populares da Maré, em 2012, ganhou dois prêmios pelos trabalhos Fluxos e Contrafluxos: o Prêmio Conrado Wessel e o Prêmio Brasil de Fotografia. Agora professor integrante do Fotografia, Periferia e Memória, Baltar enfatiza a importância do fotografar como uma ferramenta de defesa.
“É uma memória política e não partidária sobre o lugar de onde viemos, que é constantemente retratado como um espaço de ausência e terreno da violência. Fazemos uma disputa ideológica de pontos de vista, humanizando as pessoas e mostrando a beleza das favelas como contraponto ao discurso de guerra às drogas”, Luiz Baltar.
O Fotografia, Periferia e Memória age como uma oportunidade de unir conteúdos de diversos trabalhos feitos pelos mais de 20 fotógrafos e mostrar o que produzem. Thiago Ripper, filho de João Roberto Ripper, brinca que os componentes do núcleo são também filhos do seu pai, uma família de “filhos de luz”. Ele teve sua primeira experiência dando aula no Degase, onde foi oficineiro e sub-coordenador. Depois de ter “pego gosto pela coisa”, em suas palavras, deu aulas no Senac, na Escola Vagalume e na Escola de Fotografia Documental & Comunicação Crítica (EFOCO). Para ele, a fotografia é uma escola para a vida pois ensina sobre empatia ao praticante: “Tanto como professor como quanto fotógrafo, a gente está ali para aprender e conhecer coisas novas. O conhecimento não pode ficar guardado com a gente, tem que ser passado adiante”, opina.
Nascido e criado na Maré, AF Rodrigues é um dos professores que participou da oficina no Acre, em uma experiência que conta ter sido extremamente enriquecedora. Para ele, seu papel é usar da fotografia como forma de guardar memórias de uma forma sensível: “Essa história tem que ser contada de uma forma mais carinhosa, por isso o nosso fotografar é um ato revolucionário de contra-discurso. Ser fotógrafo popular é uma escolha revolucionária de ajudar no processo de superação de dificuldades individuais e coletivas através da foto. Qual é a memória que queremos deixar?”, provoca. Outra fotógrafa popular que também faz parte das oficinas é Elizângela Leite, formada em Pedagogia e também ex-aluna da EFP. Ela ressalta que a fotografia que o grupo defende é a que retrata a realidade: “A função da fotografia é mostrar a verdade das pessoas. Dentro dela, dependendo do sentido que você colocar, a foto pode ser usada de forma positiva ou pejorativa. A gente quer mostrar o real das pessoas e ouvir suas verdades”, explica. Ex-aluno da escola da Maré e formado em Comunicação Social na UFF, Fábio Caffé completa enfatizando a
importância na troca com o fotografado como pilar da fotografia humana: “No Fotografia, Periferia e Memória passamos a visão de que a fotografia deve ser partilhada, feita para que as pessoas se sintam representadas. É um processo de coautoria em que o fotografado também é parte ativa dessa criação.”, afirma.
Na oficina realizada em Juiz de Fora, o FPM rendeu frutos inesperados. O coletivo que foi unido na periferia de lá, a partir das aulas, teve a ideia de criar um grupo fixo nos moldes do Fotografia, Periferia e Memória, adaptado às necessidades da periferia de Santa Cândida. Thaynara Winter, graduada em Artes pela UFJF, é uma das pessoas que, a partir da oficina que aconteceu lá, pôde idealizar novas formas de produção fotográfica, junto ao grupo formado. O objetivo na Candinha, como foi carinhosamente apelidada pelos moradores, é a criação de uma memória coletiva da periferia como um espaço repleto de cultura e não um cenário de violência. Thaynara conta que pessoas de contextos muito diferentes compareceram à oficina, e uma história marcante foi a de um policial interessado em fotografia:
“Ele disse que levava a câmera para o trabalho, para documentar. E uma coisa muito interessante que ele contou é quando ele tirava a câmera, causava mais medo do que quando ele tirava a arma”, relata.
Segundo o idealizador do projeto, a cada ano que passava parecia que já não haveria mais espaço para esse tema e, surpreendentemente, ele acabava se renovando em um novo estado ou com outra configuração. Dante diz que atualmente acredita no contrário: “Esse projeto está só começando e existe uma potência nele. Eu estou a todos os momentos sendo contemplado por coisas deslumbrantes, só preciso mostrar”. Encantado com o material que chega ao seu conhecimento, ele está trabalhando ostensivamente na criação de acervos, para que os fotógrafos sejam vistos mesmo nas oficinas em que não comparecerem. Perguntado sobre o impacto desse trabalho nas pessoas e na sociedade, Dante responde de forma simples: “Em mim foi maior que nas pessoas, com toda certeza. Em Juiz de Fora, por exemplo, me deparei com discursos lindos e uma roda de slam e poesias. Saí de lá chorando.”, relata com seriedade.